O homem guardava tudo

 

            O homem guardava tudo. Havia programas de teatro e bilhetes de avião, postais com imagens coloridas e cartas em envelopes com selos estrangeiros. Havia instantâneos e, claro, também algumas fotografias de maiores dimensões. Junto destes encontravam-se desenhos, alguns a lápis, outros a tinta e pena, e algumas aguarelas. Alguns não eram maus. Mas mesmo os menos bem feitos tinham sido feitos à mão e deviam ter algum valor, quer para quem os produziu ou para quem os recebeu. Todos estes eram objectos que qualquer pessoa poderia guardar. Depois, havia listas de compras esbatidas, recibos do leite e da manteiga, horários do autocarro expirados há anos – itens que poucas pessoas guardariam por mais de uma semana ou duas, excepto se fossem dedutíveis nos impostos ou, mais provavelmente, por engano, esquecidos no um bolso de um sobretudo que não é usada há muito tempo, e encontrá-los anos mais tarde proporciona um breve momento de prazer quase de uma auto-arqueologia. E depois havia ainda pequenos pedaços de papel rasgados com uma ou duas palavras ilegíveis gatafunhadas. Alguns eram suficientemente grandes para conservar toda ou parte de uma frase, outros eram tão pequenos que apenas restava uma sílaba incompreensível, como se fosse um meio eco ou uma saudação, possivelmente importante, interrompida pelo bater de uma porta. Tudo o que tivesse uma letra, uma impressão ou uma imagem fora conservado. As sombras tangíveis de uma vida estavam por todo o lado, quase manchando as prateleiras, mesas, armários e secretárias sobre onde pousavam, como que esperando a redescoberta ou a redenção, ou simplesmente companhia.

            Foi assim que, para considerável surpresa minha, aconteceu reparar num grande sobrescrito que se encontrava no meio de um monte de envelopes. Chamou-me a atenção porque, enquanto todos os outros envelopes estavam cuidadosamente empilhados de modo a que o lado mais comprido ficasse perpendicular ao rebordo da prateleira que os suportava, este preciso envelope fazia um ângulo, com um canto que sobressaía como a ponta de um iceberg. A minha surpresa não se deveu ao canto do envelope – apesar de ter sido isso que primeiro me chamou a atenção –, mas o que descobri escrito nele quando o retirei da pilha onde se encontrava. Era um envelope grande e de um cinzento esbatido, do tipo onde se poderiam guardar documentos oficiais. Era bastante grosso e continha evidentemente um grande número de itens. Acho que pensei que por fim encontrara algo – uma coisa – que poderia explicar na totalidade o homem que guardava tudo. Depois vi o que nele estava escrito.

            “Isto não vale a pena guardar”, eram as palavras cuidadosamente escritas a tinta negra. O cuidado na escrita fora tal que fora desenhada levemente uma linha horizontal a lápis, obviamente com uma régua, pois as palavras estavam pousadas perfeitamente no topo da linha ténue mas rigorosa, como equilibristas sobre uma corda bamba.

            Mas eu estava enganado. O envelope não continha documentos oficiais nem uma longa carta com explicações. Continha fotografias. Há raros momentos em que sou razoavelmente metódico, por isso contei-as. Havia dezasseis. Eram todas a preto e branco, por isso presumi – talvez incorrectamente – que deviam ser relativamente antigas. Era quase todas de tamanhos diferentes, excepto no caso de um grupo de três pequenas fotografias que compunham um conjunto. Algumas tinham uma tonalidade sépia que consegue transmitir um encanto nostálgico até à imagem mais aborrecida. Todas excepto uma mostravam pessoas, a maioria pessoas sozinhas. Inicialmente, pensei que todas deveriam estar relacionadas com um indivíduo, alguém com quem o homem que guardava tudo se zangara, de modo que no seu azedume escrevera “Isto não vale a pena guardar” no envelope que as continha. Se olharmos com atenção suficiente, conseguimos encontrar ligações em qualquer lado, por isso, por alguns momentos, convenci-me de que uma pequena fotografia de um homem jovem bem parecido de cabelo louro, olhos claros (presumivelmente azuis) e uma expressão séria, envergando gravata, camisa branca e um casaco de tweed, e outra fotografia, um pouco maior, de um homem mais velho, de um grisalho que podia ter sido louro, envergando ele também casaco e gravata, mas com olheiras de cansaço sob os olhos claros e uma expressão desinquietante, alegre mas não feliz, eram da mesma pessoa, tiradas com alguns anos de diferença. Cheguei a alargar o círculo, convencendo-me que um careca de ar rígido que aparecia numa fotografia ligeiramente rasgada e colada com fita-cola e pedaços de papel soltos nas costas podia ser um tio. Talvez tenha sido a cor clara dos olhos que me conduziu nessa direcção. Mas era um beco sem saída. Na realidade, o homem careca não apresentava qualquer semelhança para com o jovem e, apesar de manter a esperança relativamente ao homem mais velho que sorria com ar assustador, acabei por ter de admitir que este provavelmente não teria qualquer relação com o jovem com o casaco de tweed. De facto, isso deu-me um certo alívio: o homem mais jovem parecia simpático, o homem mais velho nem por isso. Em seguida tentei relacionar uma imagem em sépia e vagamente esbatida de um jovem rapaz que vestia um conjunto de chapéu, casaco e calças, e que conduzia um pónei Shetland, como sendo uma versão muito jovem do homem com o casaco de tweed – a forma da boca e do nariz não eram muito diferentes – até que uma observação mais cuidada mostrou que os olhos da criança nesta fotografia eram escuros. Não sei porque é que estava tão ansioso por uma ligação, talvez não tivesse nada que ver com a maré metódica que mencionei anteriormente. E talvez fosse mais fácil perceber porque é que as fotografias de todas estas pessoas encaixavam na categoria de “não vale a pena guardar”.

            Depois, examinei uma série de três pequenas fotografias quadradas. A primeira mostrava uma jovem rapariga de tranças a segurar um gato listrado, a segunda mostrava a mesma rapariga, desta vez com um irmão mais novo além do gato, e a terceira mostrava o irmão e o gato, acompanhados de um homem que julguei ser o pai das crianças. Considerando que estariam a brincar com um gato, ninguém em nenhuma das fotografias parecia estar a tirar prazer algum da experiência. Na primeira, a rapariga, que estava sentada no chão, encostada a uma cerca branca, tinha a cara coberta pelo braço direito. Ela parecia estar a levantar o braço para pendurar a trança para brincar com o gato, mas isso deu-lhe o ar de um criminoso que tenta esconder a cara da imprensa enquanto entra no tribunal. Na segunda, a que mostra as duas crianças, as duas estão viradas frente a frente. A rapariga está a segurar no gato e o rapaz mais pequeno tem os braços estendidos para tocar na cabeça deste. Bem sei que é pouco provável, mas a sua expressão cruel faz parecer que ia estrangular o pobre animal. Em ambas as fotografias, a sombra do fotógrafo – imagino eu, o pai – atravessa as imagens, quase como um mau augúrio. Na terceira, aquela em que aparecem pai e filho, não há sombra, mas a expressão desconfortável do rapaz a olhar para o gato parece ser um mau presságio nele e dele próprio. Claro que tentei relacionar o rapaz louro destas fotografias com o jovem louro, até que me apercebi que as fotografias com o gato tinham sido tiradas depois da do jovem homem.

            O meu passo seguinte foi examinar as costas das fotografias. Estariam certamente identificadas. Questionei-me por que razão não me teria lembrado disto mais cedo. Apenas uma tinha algo escrito nas costas. Tratava-se de um pequeno retrato de uma jovem mulher, talvez indiana ou hispânica. Os seus olhos escuros olhavam directamente para a câmara, um meio sorriso nos lábios e a mão esquerda pousada sobre o ombro direito desnudado. Brincos circulares brilhantes pendiam das suas orelhas e o seu forte cabelo negro dividia-se, com anéis que lhe coroavam a cabeça e o restante caído ao longo das costas. Na parte de trás, escrito em francês, estavam as palavras “Celle que ne cessera de t’aimer”[1]. Estava assinado, mas de tal forma que apenas pude conjecturar um nome. A minha aposta foi Guilanin, mas parece-me um nome pouco provável. Suponho que Giuliana é mais provável; só que não parece ser isso. Mas, independentemente do nome, evidentemente ela não merecia ser guardada.

            Depois, pensei que a única imagem que não era de uma pessoa poderia fornecer alguma pista. Era uma das fotografias mais pequenas, posicionada de forma estranha na página (com uma margem grande em cima e uma margem mais pequena em baixo) e suja, como se tivesse caído no chão e a tivessem pisado. Estava tão ocupado a examiná-la que não parei para pensar neste aspecto. Mostrava o chão de uma sala, e conduzia até uma parede que revelava a parte de baixo de uma janela.
A sala estava imunda, o chão e a parede em frente ao fotógrafo estavam cobertos com aquilo que parecia uma mistura de graffiti, bolor e estuque a desfazer-se. Pequenos objectos rectangulares pretos estavam espalhados pelo chão, a espaços iguais mas sem se tocarem. Não era possível distinguir qualquer vista através da grande janela, apenas uma brancura despida. Foi então que reparei num pequeno buraco feito por um pionés no lado esquerdo da fotografia e percebi que tinha estado a olhá-la de lado. Virei-a. Continuava a ser uma sala com uma janela, claro, mas agora todas as marcas estavam nas paredes; no chão não existia ornamentação nem sujidade. De algum modo, parecia ainda mais vazia vista deste ângulo. Tive a esperança de que nem o jovem homem louro com o casaco de tweed, nem a rapariga de tranças, nem a jovem mulher com os brincos tivessem alguma vez posto aqui os pés . (Vê-se que continuava a tecer relações.)

            Mais uma fotografia chamou-me a atenção, pela simples razão de que sabia onde havia sido tirada. Claro que não quer dizer que sabia o local exacto, mas sim as circunstâncias. Eu próprio tinha feito fotografias destas. Era uma folha resistente com quatro fotografias idênticas – do tipo que se tira numa máquina de photomaton, do género daquelas que havia nas estações de comboio. Eram de uma mulher com ar desalinhado, talvez na casa dos vinte, com enormes óculos escuros de aros brancos, cabelo penteado para cima e imensa joalharia com ar de pechisbeque. Os lábios formavam um sorriso suficientemente aberto para mostrar as falhas onde lhe faltavam dentes. Segurava ao colo uma criança, divertida ou espantada pelo clarão do flash, cuja cabeça era quase do mesmo tamanho que a da própria mulher. A criança era negra de tez clara, a mulher era branca. Ambas pareciam felizes – as únicas caras felizes em toda a colecção. (A mulher de cabelo comprido que descrevi antes estava a sorrir, mas parecia mais uma pose que felicidade.)

            Olhando para trás, suponho que devia ter compreendido há muito tempo a razão por que não valia a pena guardar estas fotografias, mas lembrem-se de que eu estava rodeado pelos papéis do homem que guardava tudo, de modo que naturalmente parti do princípio que também estas fotografias eram dele, para guardar.

            Assim, decidi manter estas fotografias à parte, levá-las para casa para reflectir sobre o assunto, e para isso estava a colocá-las de volta no envelope. Fi-lo cuidadosamente, pois algumas – como a do careca – tinham os cantos dobrados e outras tinham vincos e começavam a rasgar-se nos lados. Imagino que foi bom ter tido tanto cuidado, pois ao fazê-lo tive de colocar a mão esquerda dentro do envelope cinzento, para o soltar um pouco. Foi então que reparei noutro pedaço de papel, transformado em mais uma dobra no fundo do envelope, não por uma qualquer intenção, mas pelo tempo. Não era uma fotografia – uma que, na minha imaginação, mostraria todas as pessoas da colecção reunidas – mas sim um pedaço de papel, muito semelhante aos diversos pedaços de papel que me rodeavam e que, evidentemente, rodeavam a vida do homem que guardava tudo.

            “Estas não são minhas”, eram as palavras que ele escrevera (por esta altura já reconhecia a letra dele); “Só as encontrei”.

            Agora percebia. Eu próprio já vira fotografias perdidas nos passeios, caídas e esquecidas, ou talvez descartadas, e encontrara fotografias entre as páginas de livros usados que comprara. Fazia sentido que um homem que guardava tudo tentasse guardar também isto, estes restos da memória das vidas de outras pessoas. Contudo, ele mantivera-as separadas, rotulando-as mesmo como não dignas de ser guardadas. Também isso fazia sentido. Estas fotografias eram como imigrantes clandestinos, atravessando furtivamente as fronteiras, ocultos pela escuridão, indesejados nas suas pátrias, estrangeiros nos novos lares – por assim dizer, cidadãos de segunda classe, destinados a serem deportados caso sejam apanhados. Não mereciam um lugar entre os itens que ele guardara – não lhe pertencendo, não sendo estimados pelos proprietários originais – e, apesar de ele os ter rotulado como não valendo a pena guardar, e fê-lo cuidadosamente, como já disse, não conseguiu obrigar-se a deitá-las fora.

            Essa tarefa cabia-me a mim. Eu não tive qualquer escrúpulo em remover as dezasseis fotografias do resto dos bens do homem – ele mesmo não as guardara por vontade própria – mas, como ele, nem eu consegui condená-las ao lixo, muito menos deixá-las nos passeios onde obviamente tinham sido encontradas (o que explicava porque é que a fotografia da sala tinha o aspecto de ter sido pisada).

            Por isso, guardei-as. De facto, não só as guardei como comecei a procurar mais. Eu, que nem sempre tinha a certeza de que as recordações da minha própria vida merecessem ser preservadas, quase me tornei obcecado por guardar recordações descartadas das vidas de estranhos. Andava de cabeça baixa, olhando para o passeio em busca de fotografias caídas, aprendendo mesmo a distinguir o papel fotográfico de outros tipos de papel. (E perguntava-me porque será que as fotografias caem com tanta frequência com a face virada para o chão; teriam estes objectos inanimados de algum modo vergonha do seu estado de desgraça, indesejado?) Assim cresceu a minha colecção. Ocasionalmente, encontrava uma série completa de fotografias – viagens a Paris, uma festa dos dezasseis anos, um baptizado. Uma era de um velho gordo e peludo, meio despido, na cama com uma garota que eu esperava que fosse a neta.

            Depois, gradualmente mas seguramente, as fotografias deixaram de aparecer. Agora encontro no máximo duas ou três por ano. Claro que isto tem a ver com o crescimento da fotografia digital: poucas pessoas (além de mim) usam máquinas à moda antiga, levam os rolos à loja para serem revelados e regressam mais tarde para ir buscar as fotografias ampliadas. Tudo isso exige trabalho e esforço, um esforço que é menos provável as pessoas despenderem nos dias que correm. Nos meus pensamentos, isto está relacionado com as fotografias descartadas, esses fragmentos tangíveis da vida descartáveis. Apesar do cuidado e energia dedicados a comprar o filme, a tirar a fotografia, a encomendar e pagar as ampliações, apesar de toda a antecipação que isso implica, aparentemente guardá-las não foi uma opção, e mesmo eliminá-las convenientemente não valeu o esforço das pessoas que as tiraram. Houve uma altura em que essas pessoas se importavam o suficiente para ter esse cuidado, mas depois deixaram de se importar.



[1] Aquela que não deixará de me amar.