A doença do exílio e os poderes da fotografia

 

Na sua origem, o espanto fotográfico está ligado à capacidade, não prevista, de um engenho humano poder fabricar uma imagem que reproduz, tal qual, o real, ou seja, pode averiguar-se o bom ajustamento entre a imagem e os factos do mundo. Um espanto que se adensa quando são consideradas as regiões limite da experiência humana que, como se sabe, dizem respeito ao sofrimento, à perda, à morte, ao trauma. É então que surge uma forte perturbação na relação de adequação entre a imagem e o mundo. São imagens que sugerem, que evocam, que provocam, mas que não possuem nada de determinado, nem designam a matéria positiva do real. As fisionomias que registam e guardam transformam-se em instâncias onde se condensam e articulam - como se de metáforas ou alegorias se tratassem - experiências, sentidos, significados.

 O livro/filme de Daniel Blaufuks tem este problema no seu interior. O seu gesto é, essencialmente, o de identificar a que é que corresponde a condição do exílio e mostrar como é que o exilado é uma categoria dos habitantes do mundo. Um gesto que, através de sucessivos desdobramentos, se descobre como sendo não só acerca da deslocação dos Judeus da Alemanha Nazi, como também sobre Lisboa, sobre a família do artista e sobre a relação complexa que se cria entre nós, as nossas origens e a herança que recebemos.

 Sob Céus Estranhos é difícil de classificar porque não corresponde a nenhum objecto específico: é um livro de fotografia, é um filme, é um registo e um arquivo. E é nesta mistura que reside a sua enorme fertilidade. Também é um documento onde confluem a percepção subjectiva da natureza e a mais rigorosa recolha da verdade histórica.

A verdade histórica não é matéria estranha à criação artística e diz respeito ao conhecimento objectivo que cada obra de arte possui como sua possibilidade. No julgamento de Eichmann em Israel, os juízes, quando confrontados com a descrição das atrocidades sofridas pelos Judeus nos campos de concentração, "declararam", em palavras de Hannah Arendt, "que um sofrimento daquela dimensão estava para além da compreensão humana, que era matéria para os grandes poetas e escritores e não podia ser tratada numa sala de tribunal".

A identificação do que está para lá das capacidade humana de compreensão é o lugar onde podemos ancorar Sob céus estranhos: é através da possibilidade de compreender o que é ficar sem terra, sem pai, sem a língua materna, que se desenvolvem os diferentes andamentos do livro/filme. Escreve Blaufuks: "E esta creio ser doença do exílio, a sensação de estar sempre distante de casa, longe da língua materna, dos livros e da comida da nossa infância, da cultura dos nosso pais." 

Ser testemunho de algo que é impossível testemunhar é aqui assumido enquanto projecto videográfico e fotográfico, ou seja, um projecto estético. Esta é a única possibilidade porque só a representação estética pode ter em conta os diferentes matizes e profundidades da experiência humana, isto é, tentar encontrar uma imagem sensível para aquilo a que, em princípio, nenhuma imagem pode jamais corresponder. A própria história da fotografia é uma sucessiva apresentação das tensões sensíveis que estão no centro do problema da imagem (fotográfica ou videográfica) como representação e prova material do real (pense-se em Charcot e Salpêtrière, no Shoah de Lanzmann ou Mikael Levin, etc).

Querer dizer e as palavras não chegarem é a experiência mais próxima do abismo aqui em causa: em vão procuram-se as palavras que melhor designam um estado interior e parece-se estar a correr contras as grades de uma prisão. Trabalhar neste limiar é assumir a expectativa de um dia se conseguir encontrar a palavra ou a imagem certas (Wittgenstein diria: a palavra que salva).

A redenção, que aqui não tem significado teológico, opera-se através da conciliação do eu com o próprio passado e a compreensão, que é o operador desta transformação, acontece por meio da representação fotográfica (que, por mais indirecta que seja, corresponde sempre a um acto de conhecimento). Por isso, à fisionomia que este livro/filme desenha da doença do exílio, corresponde uma libertação dessa mesma condição, a cura da doença.