O fotógrafo que suspeita das imagens

 

Daniel Blaufuks foi ao campo de concentração de Terezín porque desconfiou de uma fotografia. "As imagens mentem", diz ele. É por isso que "Terezín", livro sob a influência de W. G. Sebald, é um aviso sobre o presente

Terezín é o nome da localidade checa, 60 quilómetros a norte de Praga, onde os nazis estabeleceram um campo de concentração em 1942, com algumas características excepcionais: para ali foi enviada a elite judaica - artistas, intelectuais, ricos -, gente cujo desaparecimento poderia causar dissabores ao Terceiro Reich. Em 1944, a Cruz Vermelha Internacional fez uma visita de inspecção a Terezín, o que motivara, meses antes, uma "acção de embelezamento da cidade" decretada pelas SS: a densidade populacional foi aliviada, as fachadas das casas foram pintadas, plantaram-se flores, os cafés e lojas foram recuperados, criou-se um banco e um centro comunitário com auditório, biblioteca, sinagoga. Uma cidade inventada. O relatório da visita da Cruz Vermelha foi tão positivo que a organização desistiu de inspeccionar outros campos. O que inspirou os nazis a produzirem um filme de propaganda, rodado em Terezín, retratando um quotidiano idílico, para sossegar a comunidade internacional.

"Terezín" é o livro de um fotógrafo que desconfia das imagens. A primeira vez que Daniel Blaufuks viu uma fotografia de Terezín foi no livro do escritor alemão W. G. Sebald, "Austerlitz". Uma reprodução cinzenta e granulosa - como uma fotocópia de má qualidade - de uma sala com ficheiros dos prisioneiros do campo até ao tecto. Em "Terezín", Blaufuks começa por examinar obsessivamente esta imagem, ampliando algumas zonas, esventrando-a, como se fizesse uma autópsia. A sala, escreve, pareceu-lhe "o cenário de uma peça de teatro inacabada", "demasiado perfeita para ser real". Algum tempo depois, Blaufuks, que "nunca quis fazer livros ou imagens de campos de concentração", viajou para Terezín. E assim nasceu "Terezín", livro extraordinário, nos passos de W. G. Sebald. Editado pela reputadíssima Steidl, "Terezín" é o primeiro livro de Blaufuks com distribuição internacional (em Portugal, é co-editado pela Tinta da China). O livro inclui um DVD com uma montagem dos fragmentos que restam do filme rodado em Terezín. ("Terezín" também é uma "ghost story". Os rostos que se vêem nele estão mortos.) Encontro com um escritor de imagens.

No lançamento de "Terezín", praticamente não se falou de fotografia. Falou-se da história do campo de Terezín, das motivações que o conduziram a este projecto, do que ele representa para si. Este livro é a obra de um fotógrafo e, no entanto, não é um livro de fotografia?

Não, eu acho que é um livro de fotografia. Penso é que a fotografia pode cobrir estes campos também. E, portanto, ao ser um livro de fotografia, pode-nos levar para outros interesses e para outros conhecimentos. Não é o livro de um historiador, é um livro subjectivo, apesar dos dados que lá estão serem objectivos.

Esta pergunta tem a ver com o facto de a maior parte das imagens contidas no livro não serem fotografias efectivas. São digitalizações de outras imagens, de objectos, o que, não sendo novo no seu trabalho, adquire aqui outra gravidade. Nos trabalhos anteriores, essa pulsão arquivista denunciava um certo fetichismo.

Este trabalho tem muito a ver com o "Sob Céus Estranhos", onde a maior parte das fotografias utilizadas não eram, de facto, minhas. Eram fotografias de fotografias de família, também eram documentos. É o que hoje em fotografia se chama "after image", isto é, trabalha-se a partir de imagens já existentes, mas que criam um novo "corpus". As imagens criam novas imagens, apesar de continuarem a ser as mesmas imagens. Quando já existem imagens não vale a pena chover sobre chão molhado, não vale a pena fotografar aquilo que já está fotografado, será mais interessante utilizá-las de outra forma ou com outra visão. Nunca quis fazer livros sobre campos de concentração, com imagens de campos de concentração. Acho que isso já foi feito, e muito bem, no seu tempo - já não cabe à minha geração fazê-lo. As poucas imagens que existem minhas dentro do livro apenas lhes dão uma certa alma que não teriam de outra maneira.

Essas imagens pré-existentes, isoladas, têm tanto valor como as fotografias feitas por si?

Nunca estive interessado na fotografia como obra única. Não me interessa uma fotografia; interessa-me uma fotografia como parte integrante de um projecto e de um contexto. Mesmo nos diários de polaróides, os "London Diaries" (feito em 1993, publicado em 1994), há fotografias que não me interessam nada como fotografias, são más fotografias, se quisermos, mas que se integram no meu discurso. Um livro de um escritor não é feito apenas de belas palavras ou de frases bonitas, é preciso outras para sustentar o "corpus" e a linearidade do texto. Nesse sentido, todas as fotografias servem o mesmo fim. Haverá umas que se destacam mais do que outras de uma forma estética mas que, sozinhas, para mim, não teriam muito interesse. As fotografias não servem para decorar paredes.

E se não as isolarmos? Têm o mesmo valor para si?

Claro que há um nível autoral diferente. Como peça de puzzle, como peça de livro, têm exactamente o mesmo valor. Aliás, as fotografias que eu poderia tirar daí são as minhas. A informação não se perderia. Ficaria um livro mais pobre, porque há um olhar meu nessas fotografias que lhes dá o tempo presente - a ideia de que isto é feito e visto de hoje. As minhas fotografias, no fundo, são as ruínas do tempo, são o testemunho do tempo que passou. Penso que o meu trabalho também é sobre encontrar ordem num certo caos. Essas fotografias são muito isso também: fecham o espaço, para que tenhamos uma noção clara do que é o espaço. Mas, no fim, o valor de todas elas será igual.

Vamos à origem de "Terezín". Este projecto parte de uma imagem que viu no livro de Sebald, "Austerlitz", de um escritório estranhamente burocrático e estranhamente vazio. Esse espaço, como conta no livro, pareceu-lhe encenado, e "demasiado perfeito para ser real". Ou seja, o que o moveu foi a desconfiança, a suspeita em relação à imagem.

Sim. A imagem aparece no livro, ele não diz onde é que é, fica subjacente que pode ser em Terezín, mas, como sempre, o Sebald não é explícito. Nada no Sebald é explícito, tudo no Sebald é coincidência sobre coincidência e quando achamos que é mentira o que ele está a dizer, ele põe-nos uma imagem que aparentemente prova que é verdade - como se uma imagem não pudesse ser também uma mentira. Essa imagem é toda uma espécie de encenação. Como eu escrevo no livro, há um relógio que está parado exactamente às seis da tarde, os ponteiros estão verticais, há um lado vazio naquele espaço de escritório que, a mim, desde o início, me lembrou uma peça de teatro. Foi isso que me provocou mais estranheza dentro daquela sala. Foi uma curiosidade que fui tendo até que decidi pegar numas milhas da TAP e ir até lá. Não fui com a ideia de fazer um livro ou um projecto deste tamanho. Fui com a ideia de talvez tirar uma fotografia que fosse igual à do Sebald mas que fosse minha - apropriar-me daquela imagem. Depois, a coisa saiu um pouco de controlo, foi-me escapando, isto é, foi sempre estando mais à frente do que eu e eu fui sempre atrás, a perseguir. É como entrar num túnel: achamos que é um buraco pequeno e o túnel vai continuando, continuando, até conseguirmos sair outra vez.

Portanto, não foi programado.

Sim. Eu não queria fazer isto - fui fazendo. Aliás, fez-me imensa confusão ir a um campo de concentração. Nunca tinha ido, nunca tinha pensado ir. Deve ter sido o trabalho, não digo menos pensado porque ele foi muito pensado no decorrer do fazer, mas menos pensado anteriormente.

Porque é que nunca quis ir a um campo de concentração? Por pudor?

Por um lado, por pudor. Por outro lado, porque acho que um campo de concentração é um sítio tão óbvio, tão claro. E eu sei que as minhas imagens, voluntária ou involuntariamente, têm um pendor estético, têm um lado de beleza. Explorar essa beleza ou esse lado estético num campo de concentração é um pouco perverso e não é propriamente aquilo que me move. Mas criar imagens feias de um campo de concentração também não me parece muito interessante. Pessoalmente, nunca pensei que visitar um campo de concentração me levasse a algum lado onde não tivesse já estado, conhecendo eu a História e as histórias, conhecendo as memórias dos campos de concentração, conhecendo as imagens e os filmes dos campos de concentração. Nunca senti necessidade de estar num sítio destes. Para além de todo o terror que isso envolve e de toda a possível amargura e depressão que se sente quando se sai de um sítio desses.

Nunca sentiu qualquer desejo de experiência do lugar?

Não, pelo contrário. Depois de ter feito isto não tenho qualquer vontade de visitar Auschwitz ou Dachau. Não quer dizer que, se por acaso estiver perto, não vá lá. Provavelmente a minha curiosidade levar-me-à a um desses sítios se eu estiver perto. Agora, fazer a viagem propositadamente... Há tantos sítios bonitos no mundo que eu quero visitar. Um campo de concentração hoje serve principalmente como um local de memória, mas também como um local de ensino. Mas, infelizmente, já nasci ensinado.

Enquanto judeu, há qualquer coisa que o aproxima daquela história e que é para si mais pessoal. O facto de ser fotógrafo coloca uma distância entre si e aquele lugar?

A câmara fotográfica é uma desculpa - para fazer certas coisas e estar nos sítios. Por vezes penso que as pessoas resolvem muitas das suas angústias não sendo fotógrafas mas fotografando. Hoje as pessoas chegam a um sítio muito bonito e a primeira coisa que fazem é pegar na máquina fotográfica, nem sequer têm a experiência da beleza do lugar. Possivelmente já nem sabem dialogar com essa beleza. Da mesma maneira que, num sítio tão horroroso como Auschwitz, imagino que as pessoas chegam lá e a primeira coisa que fazem é tirar fotografias. A câmara fotográfica acaba por ser uma defesa. E isso funciona tanto para um fotógrafo como para um amador. Há muitas coisas que fiz na vida em que a câmara foi uma desculpa.

Terezín não era um campo de concentração como os outros. Não era um campo de extermínio, mas de transição. Nesse sentido, era uma experiência menos aterradora?

Sim, menos aterradora no sentido em que não havia câmaras de morte. Mas é muito difícil comparar o sofrimento. Para as pessoas que estavam em Terezín aquilo era um ponto de chegada da vida delas que até aí se tinha passado em liberdade, em cidades normais, na Alemanha e noutros países. Portanto, para elas, o terror já era aquilo: uma cidade inventada, em que morriam pessoas de doença, em que não havia condições de vida, porque estava mais que sobrelotada, com 50 mil pessoas, e em que as pessoas não podiam imaginar que houvesse pior do que aquilo. Só que o ser humano adapta-se. E ali estavam vivos. Em Auschwitz não estavam vivos.

Ali [Terezín] não se sabia o que se estava a passar com os judeus. Portanto, dentro do seu sofrimento, penso que as pessoas podiam ser felizes em Terezín. E é isso que é estranho no filme [feito em Terezín], é essa felicidade, verdadeira ou não, que se vê na cara de algumas pessoas. A maior parte das pessoas que aparecem no documentário falso não sobreviveu, portanto, para nós, visto de hoje, é sempre uma felicidade irreal. Mas até que ponto não era também verdadeira? Porque as pessoas estavam vivas. Dentro de todo o horror que se passava à volta, Terezín quase era uma cidade feliz.

Frequentemente, existe no livro uma descrição textual minuciosa das imagens que aparecem ao lado. De novo, isso tem a ver com uma suspeita sua em relação às imagens como estratégia de realismo, como prova irrefutável. Este livro parece dirigir-se constantemente aos leitores, dizendo: desconfiem das imagens.

Absolutamente. Não podemos confiar nas imagens. Como fotógrafo, sou o primeiro a dizer isso. As minhas fotografias são completamente subjectivas. Não há objectividade na fotografia, não existe. A maior parte das fotografias de reportagem até há bem pouco tempo eram a preto e branco. A ideia de que uma fotografia a preto e branco pode ser realista é uma mentira absoluta na qual todos nós acreditamos a certo ponto. Como é que uma fotografia a preto e branco pode ser realista e documentar a verdade se nós vemos a cores? A partir daí, tudo é uma sucessão de mentiras. As imagens mentem, mentem, mentem. Estão sempre a mentir.

Este livro podia existir sem o texto?

Não, porque as pessoas não o saberiam ler. Eu próprio não o saberia ler. Quando fui a Terezín não tinha informação suficiente. O que é bonito e poético nas fotografias que se expõem numa galeria de arte, em que cada um pensa o que quiser e tira as conclusões que quiser - vê um limão ou vê um amor perdido dentro de um mesmo enquadramento -, numa fotografia de informação é perigosíssimo.

Sebald não é só o ponto de partida, é a figura tutelar de todo este projecto. O livro segue uma estratégia sebaldiana: o Sebald integra imagens nos seus livros, a par do texto, e elas adquirem uma função paradoxal: por um lado, parecem confirmar o que é descrito no texto, mas por outro instalam a incerteza no leitor, questionando a faculdade documental das imagens.

Exactamente. E aqui é ao contrário. Onde o Sebald insere uma fotografia para tentar comprovar o seu texto, eu faço o contrário: eu insiro texto para tentar comprovar ou não as minhas fotografias. No fundo, é uma estratégia paralela ao Sebald, mas contrária. Quando fiz "Sob Céus Estranhos", não o livro, mas o filme, pouco depois peguei no primeiro livro do Sebald, que não conhecia até aí. E quase chorei por não ter conhecido o Sebald antes de fazer o filme, porque estava ali aquilo que eu procurava: essa ideia da História como uma coisa maleável, mas que se baseia em factos - os factos são inalteráveis, mas tudo o que está à volta desses factos é moldável. O que é real neste livro são os factos, isto é, o número de mortos, as pessoas que estavam, etc. Fiz pesquisa para chegar a essas conclusões. O resto pode ser ficção.

Isso é verdade em relação ao diário de Ernst K. Estão lá as fotografias do diário, mas não temos a certeza que ele tenha existido, ou que aquele objecto seja mesmo de um senhor chamado Ernst K. E depois, o nome dele remete para uma figura literária: Josef K, de "O Processo", do Kafka.

Não vou responder a isso [risos]. No fundo, todo o livro podia ser uma ficção, se não soubéssemos que esta cidade existiu. Tudo aquilo que não é facto histórico neste livro pode ser ficcionado.

Como foi o seu encontro com o Sebald? Leu-o em alemão, antes de sair a primeira tradução portuguesa [2004]. Quando o descobriu, foi a confirmação de um caminho que estava a fazer com o seu trabalho?

Foi, de facto, alguém que eu encontrei como uma alma gémea. Alguém que estava em busca daquilo que eu também estava à procura, mas muito mais à frente e muito mais talentoso. Um dia estava num "diner" em Nova Iorque e virou-se um estranho para mim, mostra-me o jornal, que tem a morte do Sebald, e ele diz: "Do you know this writer?" Foi assim que eu soube da morte dele, num acidente de automóvel [em 2001]. Não se sabe se ele teve um acidente, se teve um ataque de coração, foi uma morte em "loop", como os próprios livros dele. Tenho pena de não ter guardado o "New York Times" com a notícia da morte dele na altura.

Esta maneira de contar a História contando historiazinhas é o que me interessa. "Sob Céus Estranhos" é feito antes de eu descobrir o Sebald, mas a ideia era essa: ao contar a história de duas pessoas [os avós maternos de Blaufuks], conseguir contar a história do mundo.

Sebald não era judeu, era alemão, filho de católicos...

Ainda bem. Isto não é uma história dos judeus, é uma história da Europa, é indiferente quem foram as vítimas. Podia ter sido qualquer minoria - naquela altura eram os judeus, os homossexuais, os ciganos, e os deficientes. O Sebald é apenas o cristalizar de uma cultura alemã que, apesar dos 11 anos de nazismo, é uma cultura inacreditavelmente rica e admirável.

O que o levou a submeter as imagens do documentário a um filtro vermelho? Tem um óbvio efeito dramático.

Quando vi o filme, a mentira é tão forte que, mesmo a mim, que tinha toda a informação, aquilo pareceu-me um "kibbutz". No YouTube existem excertos do filme como propaganda, a mostrar que os campos de concentração eram sítios óptimos. Portanto, a força do filme mantém-se como mentira, para quem quiser acreditar nela. Eu não queria mostrar o filme como ele é, no original, com o preto e branco. Primeiro, decidi deixar aquela frase "Staged Nazi Film", que acho fortíssima, e gostei imenso da palavra "staged", que remetia para a fotografia inicial. E cheguei ao vermelho, menos por ser a cor do sangue, mas mais porque os alemães carimbavam um "J" nos passaportes judaicos a vermelho. Isto, para os judeus serem identificados, não dentro da Alemanha, mas principalmente para os outros países, nomeadamente Portugal e a Suíça, saberem quem haviam de deixar entrar. Por isso decidi carimbar o filme todo com esta cor vermelha. No fundo, aquilo é um carimbo que remete para esse "J", remete para a estrela amarela que os judeus eram obrigados a usar na Alemanha e em Terezín, o que é irónico, porque só havia judeus na cidade. A ideia era uma cor que embebesse, e que as imagens que estão ao de cima passassem para segundo plano - a cor é que passa a ser o primeiro plano.

Há uma frase que Eduardo Prado Coelho escreveu em 2000 a propósito de uma exposição sua, e que parece premonitória em relação a "Terezín": "O que Daniel Blaufuks nos mostra está quase sempre desabitado: foi o humano que se retirou." Faz lembrar o que Walter Benjamin escreveu sobre as fotografias de Eugène Atget em Paris: que ele fotografou a cidade sem figuras humanas, como quem fotografa o local de um crime.

E aqui aconteceu um crime, de facto. O filme e os fotogramas do filme preenchem esse vazio. Ao fazer este trabalho senti uma coisa que eu já tinha sentido no "Sob Céus Estranhos", com as fotografias que retirei dos arquivos do Ministério dos Negócios Estrangeiros. Fui fotografar fotografias de pessoas que tinham pedido vistos na altura e que não puderam entrar em Portugal. É que elas não me deram autorização para estar aqui, não falei com nenhuma destas pessoas, nem poderia, porque elas morreram praticamente todas na altura. O facto de não lhes pedir autorização e agora estarem sem autorização neste livro e neste DVD ainda me causa um pouco de pudor, de impressão, não há aqui um diálogo. Mas eu precisava das pessoas para ocuparem este espaço. Só as pessoas que habitaram esta cidade é que dão sentido ao projecto. Ainda pensei em trabalhar sobre Terezín hoje, que é uma cidade habitada por três mil checos, deverá ser interessante falar com eles e fazer um documentário. Mas não é disso que estou à procura. O que estou à procura talvez seja do que está debaixo de água. E as pessoas que lá estão hoje estão por cima da água. Há uma imagem que acho importantíssima e que vem no filme, de uma mulher que se olha ao espelho. A falta de privacidade num campo de concentração é fortíssima. Portanto, uma mulher olhar ao espelho... acho que é mais uma das mentiras deste filme. Não sei se as pessoas tinham tempo para se olhar ao espelho, não sei se tinham espelho, não sei se ainda tinham vaidade para se olharem ao espelho. No fundo, este campo de concentração põe em causa todos os outros campos de concentração.

"Terezín" é o seu primeiro livro com distribuição verdadeiramente internacional. O tema teve alguma influência nisso?

O tema, neste momento, até pode funcionar pelo contrário. Na Alemanha está-se um pouco cansado da temática. O risco que estas temáticas correm é de se esgotarem e de deixarem de chegar às pessoas porque elas já estão cansadas. Quando fiz a escola na Alemanha, tudo o que aprendi em História foi o nazismo. Era tal a preocupação com o ensinamento do nazismo que não aprendi mais nada da História alemã. De cada vez que vinha um professor novo ele sentia necessidade de falar sobre isso. Isso torna-se contraproducente.

O que eu acho que ajudou é o livro ser o que é. E teve a sorte de chegar à editora certa. Penso que é um livro diferente da maior parte dos livros de fotografia que se fazem hoje. Desde o meu primeiro livro foi isso que me interessou. A maior parte dos livros de fotografia são "greatest hits": os fotógrafos juntam as melhores fotografias e põem-nas num livro. Para mim, um livro não é isso. É como um livro de escrita: tem de ter um tema, tem de ter um princípio, um meio e um fim. Algumas dessas fotografias se calhar são boas fotografias, se calhar não são, mas há uma coisa fechada dentro desse livro que não é a obra do fotógrafo. Não há tantos livros de fotografia que sejam assim - pelo mundo fora. Na maior parte dos livros de fotografia tanto faz ver em livro como ver numa exposição ou ver em fotografias soltas, na Internet, etc. Este é um trabalho que foi pensado desde o início como livro.

O livro é mais importante do que a exposição que fez no CCB em 2007, que lhe valeu o Prémio BESPhoto?

Não penso que na exposição se possa compreender o trabalho. Penso é que se pode ganhar curiosidade pelo tema. As fotografias funcionam como testemunho de um espaço, mas não dão a dimensão e a profundidade e o prazer que dá o livro. Por isso é que apresentei a maqueta do livro na exposição do BES. Aliás, eu cheguei a pensar para o BES só expor o livro. Só que seria demasiado arrojado para uma exposição de fotografia.

Se pegar nos meus livros - não são catálogos, eu tenho muito poucos catálogos -, todos eles têm muito mais trabalho do que é possível expor e todos eles têm muito mais informação do que é possível mostrar numa exposição.

Quando já estava a produzir o livro, descobriu o autor da fotografia do "Austerlitz". Quer contar?

Fui à Steidl preparar o livro, e é o senhor Steidl que trata de tudo. Quando estava à espera dele, estavam lá os livros todos que a Steidl já produziu e entre eles encontrava-se um livro de Dirk Reinartz, um fotógrafo que eu não conhecia. Que tem este livro sobre campos de concentração que se chama "Deathly Still", que foi impresso na Steidl. Descobri esta fotografia por um grande acaso. Antes do meu livro ser entregue para impressão decidi acrescentar aquela frase que aparece no final, que era a única página possível, porque achei demasiada coincidência. Foi a última coisa. Achei incrível: ao fim destes anos todos, depois de ter procurado a imagem na Internet, depois de imensas "démarches"...

Há pouco falava do túnel: na saída do túnel, de certa forma, está a solução do início do túnel. Se o Sebald tivesse escrito de onde era a fotografia, de quem era a fotografia, provavelmente eu nunca teria feito este projecto. Porque estava já tudo explicado. Ontem, um amigo meu perguntou-me se eu tinha lido o livro do George Steiner, "Os Livros Que Não Escrevi". Que eu nunca li. Ele diz que um judeu lê um livro com um lápis na mão. Para quê? Para escrever outro livro a partir desse livro. E aqui foi o que aconteceu. Escrevi um livro a partir de outro livro, do Sebald. É uma ideia muito bonita: tudo é transmissão. Tudo vai dar noutra coisa e noutra coisa e noutra coisa. E isso, no fundo, é a história da humanidade. Todas as histórias vão tendo continuidade através das gerações. É o que faz nós sermos seres humanos. Embora às vezes nos esqueçamos.

 

publicado no jornal Público em 14 de Julho de 2010