Isto é o meu país

No dia 25 de Abril, na competição do IndieLisboa, Festival de Cinema Independente que decorre até dia 30, tira-se o retrato a Portugal: um país "Um Pouco mais Pequeno que o Indiana".
30 anos depois da Revolução, é o que resta?

Daniel Blaufuks, fotógrafo, é o realizador deste documentário (vai ser exibido pela primeira vez na terça-feira, no Fórum Lisboa, às 21h30; depois no dia 27, no cinema Londres, às 21h). Ele preferirá dizer deste "comentário", porque é uma missiva pessoal de protesto. Alimentada pelo desencanto de quem tem 42 anos, olhou para si próprio, olhou à volta e pensou: "Não é o país onde gostaria de viver"... os estádios do Euro, as casas de emigrante, as estradas que não são infinitas como as estradas americanas, os piqueniques à beira da auto-estrada, as rotundas e os repuxos de um país deprimido que procura na Net o significado da palavra "Portugal"...

De filmes como o seu costuma dizer-se que mostram uma relação "amor-ódio". Mesmo que não haja propriamente ódio, há um profundo...

...desencanto...

Amor é que não há. A câmara está sempre à procura das razões do desencanto...

Sim e não. As escolhas das imagens são subjectivas, e aqui houve de facto uma escolha de percurso. Mas em relação à vista que se tem do carro, mostra-se sempre tudo. Não se podia escolher...

Não temos só informação visual. Sobre as imagens aparece informação de texto que nos faz interpretar essas imagens sempre da mesma maneira. Para resumir: há um único ponto de vista neste filme e só esse ponto de vista.

Sim, sim. Há de certeza zonas melhores em Portugal. Podia ter passado mais tempo em Trás-os-Montes e no Alentejo, mas esse não é o Portugal que me interessa - e aliás essas regiões têm outros problemas, como a desertificação, a falta de estruturas, de dinheiro,..

O que é que o desencanta em Portugal?

O desenvolvimento desenfreado, a falta de pudor da classe política (mesmo se o filme não entra em politiquices) e a falta de soluções, Quando comecei esta vigem trazia o desencanto comigo mas quando acabei estava ainda mais desencantado. Foi uma viagem a dois, com o operador de câmara [João Ribeiro], e sentíamos esse desencanto diariamente,

É um falso "road movie"...

Porque o "road movie" parte de um encanto...

...e porque um "road movie" parte de uma abertura à descoberta. Aqui não há vontade de descobrir, mas a intenção de o realizador confirmar o que já sabe...

Sim, não parti virgem, parti para registar o país que me incomoda. Por isso também acho que isto não é um documentário, é um comentário. Podemos ir à história do cinema, de Rossellini a Nanni Moretti, e dizer também que aquilo que os filmes mostram não é a Itália, mas uma Itália. No meu caso, pode dizer-se que eu podia mostrar um país mais positivo. Mas isso deixo ao ICEP [Instituto de Comércio Externo de Portugal].

Num documentário há sempre a hipótese de contrapor outra voz. Em "Um Pouco Mais Pequeno do que o Indiana" não se dá a oportunidade de esse país ter uma voz. De onde vem essa intenção - nas imagens, na informação com que bombardeia o espectador - de não permitir pontos de fuga, de não permitir essa outra voz...?

Não quis que o país respondesse. O país teve voz para mim nos últimos 42 anos.
Todos nós temos esperanças em relação ao país onde nascemos, temos fé - palavras complicadas. De repente olhei para mim, olhei para o país e pensei: "Não é o país onde gostaria de viver". Não tenho o mínimo de nacionalismo e sou contra nacionalismos. Mas o que é que junta as pessoas de um país? É o país ou, como se diz no filme, são as memórias de um país? O que é que faz sentirmos uma identidade com outras pessoas? Acho que neste momento muitos de nós estão sem sentir identidade com as pessoas com quem coabitam. E isso obriga a um ginástica diária. Isso vê-se na TV e nos jornais. Se eu sair deste café posso apontar-lhe e dizer-lhe: "Estou farto de ver carros em cima do passeio. Estou farto de não conseguir atravessar as ruas normalmente". Estou farto. Isso diz respeito a todos nós. E há que começar a discutir isso.

Olhemos para o filme: faz uma viagem num carro como quem passeia, num Mercedes, de chapéu, como um diletante. Há nisso a representação auto-irónica de alguém que está de fora, como um estrangeirado?

É uma personagem, uma construção...

A pergunta é se essa construção reflecte, mesmo com auto-ironia, a sua condição ou a de um grupo de pessoas da sua geração, cosmopolitas....

Acho que pode ter a ver com isso. Mas tem a ver muito com o facto de entretanto termos atravessado a revolução. As pessoas que têm a minha idade lembram-se do que foi a pré-revolução, aquela coisa na escola de andar a aprender os caminhos de ferro de Angola e Moçambique. E depois houve a libertação, os anos conturbados. A 30 anos disso olho para os jornais e sinto o desencanto mesmo de quem escreve. Não estamos no caminho. Não sei qual é o caminho, mas sei que não é estragando o que temos.
Esse lado diletante que aponta tem o seu equivalente naquelas imagens dos anos 60/70, com os turistas a falar sobre Portugal: a ideia de que somos país para turistas, e que e isso é o máximo, construímos campos de golfe para turistas... Temos é que construir um país para nós. Antigamente falávamos no Algarve como um problema; agora a costa alentejana também já é um problema Também acho que este é um filme ecologista...

Voltando à sua geração: o país não conseguiu responder às expectativas criadas?

Sim. Mas prefiro falar por mim. De repente dei-me conta que cheguei a uma idade em que não sou mais jovem, em que sinto que já não consigo mudar o mundo. É a passagem dos 40 anos, as revoluções de que estávamos à espera - no meu caso, revoluções culturais - não aconteceram ou não aconteceram com a rapidez que esperava, os políticos que chegam ao poder não são diferentes dos da geração anterior, tudo isso aumenta o desencanto. Se virmos bem, toda aquela geração dos anos 60, Baez, Dylan, cantou canções de protesto contra as guerras, e afinal estamos numa época em que há mais guerras do que havia. Ou seja, apesar da aparência de uma mudança as coisas ficaram na estaca zero. Hoje podia aparecer um Bob Dylan ou essa gente toda, as causas são as mesmas...

O seu filme é uma balada de protesto...

Sim, embora não gostasse de lhe chamar assim, é uma reclamação.

A informação que despeja para o espectador - sobre casos de pedofilia em Portugal, sobre o número de portugueses deprimidos ou que não acreditam na democracia - às tantas deixa de poder ser descodificada e passa a ser simplesmente informação negativa. Como depois de uma "overdose" publicitária, há um curto-circuito no espectador em relação ao país...

Sim. Estamos numa situação tal que só um curto-circuito vai provocar mudança. Se calhar algumas das coisas com que nos últimos 15 anos andei a chatear os meus amigos nos cafés estão neste filme. E foi difícil construí-lo. Chegava deprimido o hotel durante a rodagem porque sentia que não estava a conseguir filmar aquele "deserto". Porque estava a filmar um deserto. É difícil fazer com que isso caiba num ecrã, dar-lhe uma perspectiva.
Temos que mudar muito, temos que ter uma consciência diferente daquela que temos tido. É óbvio que as pessoas se vão tornar mais ecologistas à medida que as coisas vão piorando, é óbvio que vão compreender que não se pode deixar lixo dos piqueniques na mata. Mas sinto que temos que acelerar esse processo. Porque já não tenho 20 anos. As pessoas fazem piqueniques à beira da auto-estrada, não conseguem andar 20 minutos para dentro de uma mata...

Não acha que isso se deve também ao facto de termos tido o país que tivemos com o Estado Novo?

Sim, mas não podemos continuar a desculpar tudo com os 40 anos de fascismo. 30 anos depois não podemos continuar a dizer que é por causa disso. Além de que muitos portugueses hoje não eram nascidos no tempo do Estado Novo

As heranças transmitem-se...

Sim, por isso falo muito no filme de memória. É que ao mesmo tempo destruimos a sede da Pide em Lisboa para construir um condomínio de luxo. Ou seja, por um lado os miúdos não sabem o que é o 25 de Abril. Por outro, funcionam como os pais e como os avós. Temos de chegar a esse curto-circuito.

Falou de memória. O filme está pontuado por imagens de Lisboa do antigamente, pontuação essa ambígua: há nostalgia, fascínio, por essa época. Não é contraditório? Não é este país, que o desencanta tanto, produto desse outro que estava no postais de que tanto gosta? Tendo consciência de que os postais ilustrados dessa época, onde os céus eram azuis - como diz no filme - eram uma construção, o seu fascínio por essa construção não alimenta um embuste?

Sim e não. Andamos muito esquecidos de quem somos e de onde viemos. Vivemos segundo o "stantard" europeu e americano. Em relação a essas imagens, eu não digo que aquilo era melhor. Há uma comparação subjacente, isso é claro. É como se aquela paisagem dos anos 70 fosse o nosso grau zero. Foi ali que começámos. A crescer.
Nostalgia... em Portugal isso tem uma conotação negativa. Como diz alguém, ser nostálgico é também querer ter uma fruta biológica. Não sei se é tão negativo assim.
Há uma memória de infância, a que também pertencem essas imagens, que servem de contraponto, dos soldados a irem para África. O que temos de decidir é: ou deitamos tudo abaixo, ou guardamos as coisas. Mas guardar a sério. Essas imagens estão ali para sinalizar uma não relação que temos com a nossa memória. E para dizer que a geração que esteve antes de nós e que viveu aquele mundo, ao envelhecer entrou para uma espécie de exílio no seu próprio país. Isso acontece normalmente a quem envelhece, mas em Portugal acontece de forma radical. As pessoas perdem a sua terra. Perdem o amor à terra. E ao perderem isso, o que conta é o dinheiro. Olhe-se para os estádios de futebol [do Euro]. É um absurdo. Para mim não faz sentido. Como às tantas digo no filme, a palavra mais pesquisada na Net pelos portugueses é a palavra Portugal. Porquê? Pela mesma razão que o livro do José Gil ["Portugal Hoje"] foi um "best-seller". Porque não sabemos quem é e o que é.

Vamos à sua personagem. Porque é que a criou? Para acolchoar os tiros de artilharia que o filme dispara?

Sim, em parte, e também para permitir que se dissessem certas coisas - há um lado poético no texto, que vai buscar referências a vários autores - que eu, Daniel, não poderia dizer. A ideia do carro, do chapéu, tem a ver com os "road movies" americanos. Fui ver "road movies", "Paris Texas", por aí.

Diz às tantas que as estradas americanas não têm fim enquanto em Portugal elas são sempre limitadas...

O projecto do filme parte da ironia de fazer um "road movie" num país que se percorre em quatro horas. Daí que concorde que seja um falso "road movie". A ironia é acentuada, aliás, pelo título.

Este retrato do país não é um retrato deformado?

Pode ser, mas ninguém pode negar o facto de, quando se diz a um estrangeiro para ir à Nazaré em Agosto, ele vem de lá horrorizado. Claro, há quem adore ir. E há pessoas que param os carros em cima dos passeios. E não têm respeito pelas outras. Mas o que acontece é que estamos reféns dessas pessoas. E se calhar por culpa nossa. Porque há enorme letargia. Em outros países as pessoas tomam atitudes. O filme tenta ser um alerta nessa matéria. Não gostaria que fosse chover sobre terra molhada. É preciso que nos atirem coisas cruéis à cara. Quando se vive com alguém toda a vida, não se vê essa pessoa envelhecer. Quando se está fora dois ou três anos, e se regressa, é que se nota a diferença. As viagens que fiz ajudaram-me a perceber o país que temos. Deram-me uma consciência diferente. Ainda por cima montei o filme em Nova Iorque. Estava literalmente fora.

De que é que gosta em Portugal?

De imensas coisas. Lisboa é uma cidade fantástica. Mas está a ser estragada. Aqueles estudos que cito sobre o facto de os portugueses serem antipáticos... não temos sentido isso na pele? Não é que o sejam por natureza, mas as condições de vida e a falta de coabitação respeitosa entre nós tornou-nos antipáticos. Antigamente as pessoas diziam que os portugueses eram os mais simpáticos do planeta. O que é que mudou? Antigamente ia-se a uma repartição pública e era-se mal-tratado. Agora vamos a um café e somos mal-tratados.

É precisamente na parte do filme em que diz que as estradas americanas não têm fim e que as estradas portuguesas são claustrofóbias, que nos lembrámos: se metesse toda aquela informação negativa sobre uma imagem de uma estrada americana, daquelas que não têm fim, a "imagem" final, esse país mental a que se chegaria, não seria igualmente monstruoso?

Seria de certa forma, mas nos Estados Unidos há mais escolha. Aqui é mais complicado contrapor. Há muito pouco contraponto. Pelo menos na faixa litoral. Mesmo nas zonas mais fabulosas, há sempre à espreita um perigo, uma nova auto-estrada, uma nova urbanização, um novo campo de golfe. Quando um país está pobre, tudo o que é feito é visto como benesse, vai trazer dinheiro, etc. Ora, isso coloca-nos próximo do terceiro mundo, em que tudo o que é feito é bom. Isso é perigoso. Neste momento a factura já é alta. Já a estamos a pagar, mas a grande factura ainda há-de vir. A destruição da costa é evidente, a falta de qualquer controle.

O filme vai passar no IndieLisboa no dia 25 de Abril. O que tem a dizer sobre isso?

Há um coisa que os programadores do Indie não sabem. O projecto é de 2003, o ano do meu grande desalento, em que me senti completamente afastado, assustado e angustiado. 2004 foi um ano charneira por várias razões: os 30 anos do 25 de Abril, o Euro 2004, que me remeteu para a ideia salazarista do Fado, Fátima e Futebol - era o Euro que ia salvar o país, dar-nos orgulho e brilho e tudo o mais -, o alargamento da comunidade europeia em direcção a leste, pondo mais uma vez Portugal à margem, coisa a que não podemos escapar. E o facto de ter feito 40 anos. Ainda se tornou mais premente em 2004 com a demissão de Durão Barroso e a entrada em cena de Pedro Santana Lopes. E esse desencanto não anda longe do facto de todos os verões termos incêndios.

Que vontade é que acha que existe de receber o seu filme?

Lendo os jornais, sinto que as pessoas estão tão desapontadas como eu. Isso atravessa todas as gerações e é perigoso para a democracia. Não é por acaso que se tem falado tanto de na geração a seguir à minha estar a haver imensa gente a emigrar outra vez. Tenho, de qualquer forma, algum receio que se verifique o que se verifica quando alguém fala mal do país: as pessoas fecham-se em copas e "viva Portugal". Tenho medo disso.
Acho que chegou a altura de pegarmos nos nossos direitos, que é reclamar. As manifestações não têm de ser só de 10 pessoas. E que elas se manifestem não só porque estão a perder o dinheiro delas, mas porque estão a perder uma árvore ou um edifício. Porque é que as pessoas que estiveram presas pela Pide não fizeram algum peso para que o edifício não fosse deitado a baixo? São sítios de memória, são sítios importantes. Sem memórias deixamos de ser um país, somos apenas uma região. Ainda mais pequena do que o Indiana...