Recorda, não te esqueças

Daniel Blaufuks,
  
Quando estavam afastadas as esperanças de encontrá-lo eis que «Sob céus estranhos», livro e filme, foi encontrado mesmo a poucos metros de minha casa por aqueles que mo ofereceram neste Natal. Ao rever as imagens vistas e o texto escutado aquando da passagem do filme no Goethe-Institut, lembrei-me das reflexões que me suscitaram na altura acerca dos tempos nele focados e interligados e da maneira de ser, dizer-se ou transmitir um ser-judeu (distinto do que encontrara até aí) espelhada no que/e como é dito e mostrado, levando-me a tomar a liberdade de vir por este meio (através do seu site) manifestar-lhas.
  
Nele leio uma forma simultaneamente sensível e exigente de interligar o tempo familiar e o tempo histórico usando, para isso, (conscientemente ou não), como um fio condutor, o tempo judaico - o qual, à diferença de outros, interliga o passado, o presente e o futuro - mas desritualizado, ou melhor, secularizado, tal como acontecia num certo judaísmo alemão de uma época anterior à Guerra. E isso através de imagens (e texto) que espelham e são elas próprias evocadoras de elementos que representam simbolicamente noções temporais e identitárias em jogo. As pedras tumulares a iniciar, a casa ou as árvores a terminar o trajecto temporal e espacial dos seus avós, chegam-nos como expressões simbólicas da perenidade familiar-identitária - memória e raízes (criadas, cuidadas e deixadas num lugar específico) e que herdaram, senão a experiência, pelo menos o sentimento (será, neste caso, experiência interior?) de «exílio». E este «exílio» de que fala suscita-me questões, nomeadamente as que se prendem, por um lado, com a sua diferença (e em que moldes?) em relação ao que foi vivido e sentido pelos seus familiares ascendentes (e ao que é tradicionalmente tratado por alguma bibliografia judaica), não parecendo supor, pelo menos aparentemente, uma desidentificação identitária com o contexto social, linguístico, cultural, ... circundante, e, por outro, com a existência ou não de estratégias (distintas) manejadas para atenuá-lo. Segue-se a fotografia do seu avô (memória) com os netos (raízes, ligações inter-temporais) caminhando de frente, como que numa ligação do tempo anterior com o presente (da altura); mais à frente, o neto no baloiço e que tal como ele nos movimenta num «à frente e atrás» dirigindo o processo de rememorização e o diálogo entre os diferentes contextos temporais, espaciais e sociais; a tocar o fim, o avô e os netos, tendo já "passado por nós", dirigem-se "para além" (futuro) - o diálogo inter-temporal agora ("o futuro de ontem") por si eternizado (no filme, livro) ...
  
«Recorda-te, não te esqueças», preceito que estrutura o tempo judaico, parece igualmente assomar-se ao longo do livro-filme. Mas não tanto para repercutir-se (pelo menos assim o sinto ou imagino) no sentido de «dever de memória» (Levi); em vez disso, parece traduzir ou pelo menos assim chegar-nos mais como uma necessidade de anular a historicidade (através do tempo judaico) e manter vivas as memórias familiares sem que nada seja esquecido, mesmo aquilo que aos outros possa parecer trivial («a tarde de maçã da avó», os animais de pano criados no contexto de uma estratégia de sobrevivência, a nomeação de objectos que desapareceram, «a menina Ângela», etc.). Poderá também pensar-se tudo isso como um encontro do «Eu» com essa identidade, a sua análise, (re)colocação ou manutenção e que acontece em determinados momentos da nossa existência?
  
Sobressai, ainda, entre muitas outras coisas que se podem ler e indagar, uma preocupação de narrar a biografia familiar com "verdade", isto é, procurando estar o mais próximo possível das experiências e da memória (da memória) dessas experiências, intercalando-o com registos exteriores. O que me deixa a pensar que temas (e de que modo estratégico) serão conscientemente ocultados nos contextos em que prima a exigência (interior) do pormenor ou da "verdade".
  
Felicito-o pelo seu precioso trabalho que emociona e nos move à reflexão e à indagação (ilimitada), agora ao alcance da nossa mão, e desejo-lhe que em cada dia do novo ano continue a encontrar a criatividade desejada.
  
 
  
Ana Brinca
  
 
  
P.S.-Desculpe ter sido tão longa, mas há muito por dizer e estudar a partir do livro em relação aos conceitos de identidade (judaica), tempo, exílio, ..