Lisboa, na plataforma de comboios num dia enevoado de domingo.

 

Meu querido Daniel,

Sopra um estranho vento na plataforma onde tomarei o comboio em direcção ao Norte. É sempre assim: há anos, sempre aos domingos, faço esta trajectória como rota semanal, afinal empreendo esta difícil missão, mesmo que prazerosa, do ensino no norte do país. Nesta trajectória muitas cartas foram escritas, muitos textos pensados, elaboradas desculpas e algumas atiradas para o livro das miudezas e mesmo da mesquinhez que é a nossa existência. Penso mesmo que é nos comboios que parte da vida acontece, ou esvai-se nalguns casos. O comboio como espaço colectivo e histórico é palco de memórias, fim de existências, começo de novos mundos, perdas e ganhos, enfim... Nos comboios – nunca percebi porque em Portugal usa-se a palavra comboio e não trem, como é usual em todas as línguas europeias, até as que não têm origem latina, enfim, são idiossincrasias inexplicáveis, penso eu – volto aos comboios, neles constroem-se parte do conhecimento humano, de narrativas históricas, literárias, cinéfilas, enfim um espaço-tempo do viver fenomenológico. Todo este preâmbulo é apenas para falar de uma viagem, ou da decisão da viagem dos teus avós, que acabou por resultar em ti, na tua história, resultando numa memória comum, afinal as histórias individuais somadas são colectivas, penso eu.
Foi a pensar em ti, nesta tua história, em verdade na história dos que conduzem a ti e que acabaram por chegar a este lugar de “céus estranhos”, lugares que pareciam remotos que hoje é tua casa. Pois foi a pensar nisso que começou a minha viagem através desta viagem física. Em busca de uma pista, de um indício qualquer sobre o que se passou, como num filme baseado num livro de Agatha Christie, que comecei a divagar neste comboio. E se tivesse sido diferente, se teu avô não tivesse vindo a Portugal, perguntas tu no teu filme “Sob céus estranhos”. Penso que naquele filme-livro estão ali depositadas memórias pessoais – que nunca são só pessoais mas ao fim e ao cabo, colectivas – acerca de tua origem. Ele é um documento importante da história tua mas também de Portugal, da Alemanha, da Europa. É um espaço memória-tempo e é parte integrante deste puzzle comum que é a história.
E neste Terezín, que agora lanças, fazes uma espécie de arco do tempo que se fecha a nossa volta. Começas o livro a falar sobre uma imagem na tua mente. A imagem em questão chega-te numa viagem de Praga a Theresienstandt. A imagem, má impressa nas tuas palavras, está no fim do livro, no entanto ela é suficiente para despertar tua consciência e fixar-se definitivamente no teu imaginário. Através deste imaginário da fotografia que abre o teu livro, leva-nos pela mão a conhecer o campo de Therezín. Este é apenas mais um entre tantos campos construídos para dizimar pessoas. Ao passar as páginas do livro assaltam-me a mente nomes como Stefan Zweig, Lazar Segall, Paulo Rónai e Walter Benjamin, autores que tiveram a experiência da viagem como fuga. Curioso é pensar que penso mais nos autores que viajaram a fugir da guerra do que aqueles que passaram pelos campos, como Paul Celan ou Primo Levi. Estranho poder de evocação a ideia da viagem como rota de fuga, penso cá com meus botões. Tua obra Terezín coloca-se a par com "Se isto é um homem" (Se questo è uomo) obra de Levi que deixa sempre a pergunta se isto poderia ser mesmo obra do homem?
Tenho o estranho hábito de evocar Walter Benjamin quando vejo tuas fotografias ou será elas mesmo que me levam de modo inevitável à Walter Benjamin? Enfim, veio-me a mente o conto a "A Viagem de Mascot" quando Benjamin diz que “é uma daquelas histórias que se ouvem em alto-mar, e para as quais o casco do navio é a melhor caixa de ressonância e o ritmo das máquinas, o melhor acompanhamento, uma daquelas histórias, cuja origem é melhor não indagar”. Contrario Benjamin e indago-me sempre diante das tuas imagens: são elas o ritmo das máquinas que me levam de volta? Será a sabedoria da vida? Diga-se de passagem, em Benjamin, o termo sabedoria de vida relaciona-se sobretudo com a barbárie moderna. O ensaio em que Benjamin tem como tema esta questão, o vocabulário constitutivo do texto benjaminiano compõe-se das expressões “acções da experiência”; “pobres em experiências comunicáveis”; “experiências transmissíveis”; “experiência estratégica”; “experiência económica”; “experiência do corpo”; “experiência moral”; “pobreza de experiência” ... É facto que Benjamin está a pensar sobre o nosso pathos, a fim de reflectir sobre nossas experiências em tempos de barbárie. Continua Benjamin no conto da Viagem de Mascot: “Quem encontra ainda pessoas que saibam contar histórias como elas devem ser contadas? Que moribundos dizem hoje palavras tão duráveis que possam ser transmitidas como um anel, de geração em geração? Quem é ajudado, hoje, por um provérbio oportuno? Quem tentará, sequer, lidar com a juventude invocando sua experiência” .
Comum a todos, a barbárie é filha dilecta do modo de pensar, fruto do que os alemães tão bem nominaram de zeitgeist, tempo de evocar não a diferença, mas sim a homogeneidade pretensamente igualitária. Assim se pensava nos sistemas totalitários. Penso mesmo que a igualdade só tem validade se residir na diferença. A Europa que gerou o sistema cultural mais impressionante da humanidade também gerou os sistemas mais opressivos, pretensamente igualitários. Ao romper a casca, o invólucro de protecção, ao partir-se o verniz do homem civilizado saem monstros maravilhosos como o expressionismo, mas também monstros terríveis como o nazismo, o fascismo, o comunismo e outras barbaridades. Tua obra Terezin é um testemunho que elucida muitíssimo bem esta viagem através das imagens. É uma viagem no tempo presente, evocando imagens do passado. O que nos espera no fim deste trajecto? Penso sempre numa herança colectiva e ai retomo a um belo texto da escritora Conceição Caleiro:
“Os nomes daí devolvidos dos judeus, dos ciganos, dos homossexuais, dos rebeldes e resistentes”...
A morte é uma flor que germina, como um grão de amor, acrescentaste...
Ao chegar a casa, num outro dia, mostraste-me quatro fotografias que trazias contigo. Eram estranhas. Nunca tinha visto nada assim. Pareciam querer contar uma história, literalmente, uma negra história arrebatada do inferno, por um sonderkommando disseste, e eu não sabia o que era e tu ensinaste-me. Ensinas-me tanta coisa. Era um deles, era alguém que havia de morrer por ter visto, por ter organizado metodicamente os seus…
E refizemos os dois a sua história, ao som de Górecki. Lento – cantabile e semplice…
Sim, é sombrio, mas não na infância, ainda cantabile, nas imagens bem guardadas da sua infância…
Agora dorme, adormece no seio da música que arvora como sempre redentora. A música que ela ouvia no futuro dentro nós” .
Meu querido Daniel, assim são os factos da vida; Assim é a vida, cabe entretanto a artistas como tu revolver o lixo da história. Benjamin no ensaio sobre a Modernidade diz que “os poetas encontram na rua o lixo da sociedade e a partir dele fazem sua crítica heróica.” Obrigado por nos fazer lembrar.

Com um afectuoso abraço

Paulo Reis

I -Walter Benjamin, Obras escolhidas, tradução Sergio
II -Paulo Roaunet - São Paulo: Brasiliense.
Idem.
III - Conceição Caleiro - revista Egoísta.