Escavando e recordando

Em "Esculpir o tempo",[i] o cineasta Andrei Tarkovsky empenha-se em assegurar que a unidade visual de um artista está na verdade com que este empreende a sua obra: um discurso autónomo, coerente e vocacionado para uma ética pessoal, humana e artística. Herdeiro de um pensamento revolucionário, advogava que o verdadeiro artista tem o compromisso ético e o fazer responsável, e que cada um de nós é responsável por assumir seu passado perante a colectividade. Exemplo cabal de um artista que fez da estética uma ética para a humanidade, como o propôs Gabo, Pevesner, Rodchenko e todos os artistas russos da primeira metade do século XX, Tarkovsky comparou a obra de um realizador ao de um escultor que, “guiado pela visão interior de sua futura obra, elimina tudo o que não faz parte dela”.

O compromisso com a verdade individual – que é sempre colectiva ao final – alimentou a obra de muitos dos pensadores do século XX, de Walter Benjamin a Primo Levi, de Hannah Arendt a Stefan Zweig, de Albert Camus a Samuel Beckett, de Piero Manzoni e Yves Klein a Joseph Beuys. Actualmente, orienta a obra de artistas que fazem de sua arte uma voz da consciência: Hans Haacke, Christian Boltanski, Francis Alys, Thomas Hirschhorn, Costa Vece e Daniel Blaufuks. O discurso contra o esquecimento é central na obras destes artistas e permeiam a actualidade. Suas obras eles revolvem as cinzas do passado para alertar ao presente que não é possível esquecer. Daniel Blaufuks trabalha com os escombros do poder e usa a memória como arma definitiva, criando uma narrativa sobre outras narrativas, algumas anónimas, outras de seu círculo familiar.

Pensar na obra de Daniel Blaufuks leva-me a omnipresença intelectual de Walter Benjamin. O apego à memória tanto do filósofo quanto do artista, de forma inequívoca, revelam-nos a sensação da dor e da delícia de saber-se o que se é. Seja porque ambos, atrasvés de suas obras, ensinam-nos o valor da memória, do afecto, ou do desespero, ao lutar contra a escassez da memória, contra o hiato do tempo, agarrando-se aos factos para que estes não escapem como uma água escorre pelo ralo. Um e outro, demiurgos, avisam-nos: sim, a memória deve ser cultivada, pelo bem da saúde e evitar a doença ennui que corrói a alma. A deambulação em torno da obra de Daniel Blaufuks leva-me sempre aos escritos memoráveis de Walter Benjamin. Penso benjaminianamente que escrever é deambular sobre a própria história do que se escreve, naquilo que o filósofo chamou de “faire de la flannerie”. O interesse na fiel e na assente marca do filósofo em maximizar a capacidade mnemónica leva-me directamente ao pequeno, precioso e intenso texto intitulado Escavando e recordando. Ipso facto, para quem não o conhece, ressalto sua eloquência ao transcrevê-lo ipsis litteris:

A língua tem indicado inequivocadamente que a memória não é um instrumento para a exploração do passado; é, antes, o meio. É o meio onde se deu a vivência, assim como o solo é o meio no qual as antigas cidades estão soterradas. Quem pretende se aproximar do passado soterrado deve agir como um homem que escava. Antes de tudo, não deve temer voltar sempre ao mesmo fato, espalhá-lo como se espalha a terra, revolvê-lo como se revolve o solo. Pois “factos” nada são além de camadas que apenas à exploração mais cuidadosa entregam aquilo que recompensa a escavação. Ou seja, as imagens que, desprendidas de todas as conexões mais primitivas, ficam como preciosidades nos sóbrios aposentos do nosso entendimento tardio, igual a torsos na galeria do coleccionador. E certamente é útil avançar em escavações segundo planos. Mas é igualmente indispensável a enxada cautelosa e tacteante na terra escura. E se ilude, privando-se do melhor, quem só faz o inventário dos achados e não sabe assinalar no terreno de hoje o lugar no qual é conservado o velho. Assim, verdadeiras lembranças devem proceder informativamente muito menos do que indicar o lugar exacto onde o investigador se apoderou delas. Em rigor, épica e rapsodicamente, uma verdadeira lembrança deve, portanto, ao mesmo tempo, fornecer uma imagem daquele que se lembra, assim como um bom relatório arqueológico deve não apenas indicar as camadas das quais se originam seus achados, mas também, antes de tudo, aquelas outras que foram atravessadas anteriormente.[ii]

O breve texto cabe como luva na arqueologia imagética de Daniel Blaufuks. Talvez por serem ambos judeus com história que cruzam-se no espaço e no tempo do nosso tempo, estes dizem-nos que não é possível esquecer, é imoral o esquecimento! Benjamin como Primo (Levi), como Herbert (August, o avô do artista), como Wladyslaw (Szpilman) são personagens de histórias que ilustram não somente livros, filmes e fotografias, são personagens de uma história colectiva, fazem parte das camadas do tempo, assentes nas outras camadas que foram atravessadas anteriormente. O vazio deixado pelo desaparecimento de seres em nome de uma arbitraria ideologia são factos que atravessaram o filósofo, atravessou a Daniel Blaufuks, atravessou-nos historicamente. Esse fantasma ainda persiste em atravessar-nos graças aos fluxos actuais de recrudescimento de alguns sistemas sócio-políticos e da escalada do saudosismo nazi-fascista que existe em algumas nações europeias. O ovo da serpente está outra vez a chocar.   

Como Walter Benjamin, Daniel Blaufuks é um artista que pensa numa escala temporal e percebemos que há na sua obra uma tendência para a paralisação do tempo, operando como uma Medusa: seu olhar congela o movimento para nos revelar novas facetas, novas interpretações, até então insuspeitas, do real. Por isso, a fotografia e o filme convertem-se neste olhar mediado entre o real e a interpretação. Com seu close-up nos pequenos detalhes das letras apagadas, dos papéis de parede com bolor, dos vidros partidos, do pó e da sujidade dos ambientes ou na câmara lenta que perscruta e releva o irrelevado (vídeo "Traum"). A teoria da alegoria e da melancolia desdobra uma dialéctica tensa entre o verbal e o visual, entre o silêncio e o tautológico. Tal como Benjamin que criou uma obra oscilante entre o fonético e o imagético, Blaufuks realiza imagens do quiasma temporal, sempre ao ver cada fotograma como uma espécie de fóssil, uma história individual, mas também colectiva. O artista, tal e qual o filósofo, luta contra uma espécie de "história natural da destruição".

Se como homem Benjamin acumulou a ruína em sua passagem pelo mundo, tendo de escolher a lucidez de uma morte pelas próprias mãos para não se entregar ao desejo sôfrego do carrasco, como pensador deixou um testemunho existencial, biográfico, filosófico, únicos, no qual sua história pessoal é correlata à ruína de nossa história, dessa arquitectura da destruição. O "Mein Kampf" de Benjamin foi escrever que a história não significa citar a história, mas vivê-la, pois no conceito de citação está implícito que o objecto histórico em questão é arrancado do seu contexto. Em outro texto igualmente importante, "Passagens", Benjamin constrói uma distanásia da utopia através das imagens reconhecidas, afinal a imagem é a dialéctica na imobilidade. Pois, enquanto a relação do presente com o passado é puramente temporal, a do ocorrido com o agora é dialéctica – não de natureza temporal, mas imagética. Para Benjamin e Blaufuks, escrever a história significa dar às datas a sua fisionomia. Blaufuks convida-nos a contemplar um vasto tecido sociocultural, que reflecte e dá forma às nossas relações com o ambiente, ao mesmo tempo que produzimos o tecido da nossa própria criação – uma representação de nós próprios. O mundo acaba sempre por ser visto e conhecido à luz da projecção que fazemos da nossa condição intersubjectiva. Este desejo profundo de saber é lindamente escondido numa série de estratégias através das quais se extrai da experiência mais banal uma descrição sobre como é viver na Terra, dizendo-nos exactamente o oposto, como não é.[iii]

Os personagens de Daniel Blaufuks envergam o mito do pequeno herói, do homem sem qualidades, do anjo caído, do homem errado; serão tantos relatos fílmicos ou literários que poderiam explicar quem são estes seres, mas a narrativa blaufukiana parte do real, das histórias vividas, das misérias do quotidiano. Na medida que toma a posição de falar como um historiador lidando com material biográfico familiar, Daniel Blaufuks age como o agente e negociador da história. Sophie Calle, também uma artista que é agente e negociadora da história – inquire ao espectador:  Atrair a atenção / dissipar a atenção. Você está a olhar? Você viu-me? Surpreendeu-me em plena acção? Isso a que todas as respostas são, até certo ponto, equívocas. E se pudéssemos responder por um sim, sem ambiguidade, sem ambivalência, então seria o fim do jogo, e isso não valeria esta vela que se incendeia de modo tão “paranervante” e inquisitivo. [iv]

 O enigma é decifrado, pois existem muitas maneiras de se narrar uma história, seja pela investigação científica, procurando ater-se aos factos, seja pela interpretação, defendendo uma abordagem particular. A arte que pretende-se verdadeira procura unir as duas pontas do fio. Penso ser assim que Daniel Blaufuks aborda seus temas e personagens – retirando da investigação minuciosa, científica e filosófica as razões interpretativas de sua exibição pública, evitando o artificialismo e a apologia das imagens surreais ou explicitamente violentas. Antes prefere a abordagem fenomenológica husserliana, incitando o espectador a construir sua própria narrativa a partir dos fragmentos e indícios que o artista oferece. Seu papel é de intérprete, ou se quisermos um lugar mais propício, de mediador dialéctico de uma história que não lhe pertence / lhe pertence.

[i] Tarkovsky,  Andrei. Esculpir o tempo. São Paulo: Martins Fontes, 1990.

[ii] Benjamin, Walter. Obras Escolhidas II – Rua de mão única. 5ª ed. São Paulo: Brasiliense.

[iii] Safran, Yehuda. A Perfect Day

[iv] Calle, Sophie, Beaux Art Magazine, Venice Edition, 2007