O país das águas

Um dos mais belos romances do escritor inglês Graham Swift intitula-se "Waterland" - o "país das águas". Fala-nos dos Fens, região baixa do Leste de Inglaterra, cerca de três mil quilómetros quadrados que têm a oeste as colinas calcárias de Midlands e a sul as colinas gredosas de Cambridgeshire, Suffolk e Norfolk. São uma terra conquistada às águas do mar do Norte e que mantém ainda dentro de si a movência dos mares. Pouco a pouco, as águas foram recuando, cedendo à acumulação do lodo. "O lodo: essa palavra que, quando a pronunciamos deixando suavemente o ar passar através dos dentes, evoca paciência, ardil, insinuação no modo de proceder. O lodo: o que forma e mina subterraneamente os continentes; o que vai demolindo ao construir; o que é simultaneamente aluvião e erosão; o que não é nem progresso nem declínio.

"Como escreve Graham Swift, "há uma acção equívoca do lodo. Assim como eleva o nível das terras, afasta o mar e permite que a turba se vá adensando, assim também impede o curso dos rios, bloqueia as suas embocaduras, faz que a terra recém-formada continue vulnerável às inundações e detenha a fuga das águas".

Suponho que foi em 1996 que vi directamente (e não através de reproduções ou ecos mais ou menos críticos) uma exposição de Daniel Blaufuks - mais precisamente, em Paris, no Centro Cultural Português da Fundação Calouste Gulbenkian, por ocasião do Mois de la Photo. Tratava-se da apresentação de um conjunto de enormes fotografias que Daniel Blaufuks fizera em 1995 em Tubingen, a partir do espectáculo Torquato Tasso de Goethe, produzido por uma companhia alemã de teatro. "A partir de", digamos que é força de expressão. Daniel Blaufuks introduz-se na lógica do espectáculo ao fotografar uma série de estátuas antigas, em processo de restauração, que se encontravam num armazém municipal.

Ao entrar na exposição, não pude deixar de dizer para mim mesmo: cheguei ao país das águas. Cobertas de ligaduras, adesivos negros, plásticos, véus de uma nupcialidade suspensa, estes seres pousados sobre a linha do tempo combatem entre o mar e o lodo, entre a verticalidade mais romana das memórias e decomposição mortífera que os envolve. Neste país das águas caminha-se em silêncio, cobertos que somos por todos os cambiantes de um imenso azul oceânico. Como sempre, julgo, em Daniel Blaufuks, tudo se passa numa espécie de curto-circuito entre o instante e a eternidade.

Falando do pai de Délacroix, Baudelaire evocava essa "raça de homens fortes cujos últimos representantes conhecemos na nossa infância" - esses que acreditavam em Voltaire e Rousseau e participaram na Revolução Francesa. Esta frase só pode ser lida de um único modo: os homens fortes são sempre aqueles que vieram antes de nós, a nossa infância é a orla marítima donde ainda os podemos avistar; eles estarão sempre ligados ao país das águas. Daí aquele olhar vazio de peixes aflitos, daí aquele grito amordaçado pelos limos, mas daí também a silenciosa austeridade dos seus corpos magoados, das suas poses declamadas num teatro em ruínas.

Julgo que a palavra "ruínas" faz imenso sentido para o trabalho de Daniel Blaufuks. Não numa acepção literal, como figuração imediata (embora isso também suceda). Mas como atmosfera dominante, à maneira de Walter Benjamin, que é de muitas maneiras a figura tutelar deste empreendimento. Por um lado, Daniel Blaufuks recolhe os sinais, os indícios, as pegadas, os vestígios submersos de uma cultura, de uma época ou de um sonho - e recolhe-os na sua dor intrínseca, como feridas do tempo, incisões só aparentemente cicatrizadas. O tópico da viagem é acima de tudo o fio narrativo desse melancólico inventário. Por isso o que nos mostra está quase sempre desabitado: não foram as águas que se retiraram, foi o humano. Quando sobrevive, é sob a forma hirta de estátua ou manequim - a mão iluminada na sua mudez de cera toca a transparência nocturna de uma porta em São Petersburgo. As figuras que aparecem no seu diário de viagem estão em selos, ícones, publicidades, gravuras históricas. Ou um homem de costas lendo um jornal. Ou um confidencial olhar adormecido que sobrevive ao negro opaco da imagem.

Com a excepção dos momentos em que o próprio autor se põe em cena. E nesta série de que estou a falar - intitulada "Viagem a São Petersburgo" e publicada no âmbito dos Encontros de Fotografia em Coimbra, excelentemente organizados por Albano da Silva Pereira - há um momento em que Daniel aparece, apenas a cabeça sobressaindo de uma banheira coberta por uma água ocre, a nuca encostada ao frio dos azulejos e tudo acompanhado pela seguinte declaração: "Quando morrer vou ter pena de todos os sítios que não cheguei a ver." Se um dia se fizer um estudo do estatuto da inscrição subjectiva na obra de Daniel Blaufuks (este rastro de luz de um sujeito crepuscular), poderemos analisar a curiosa oscilação narcísica desta frase: será que Daniel tem pena de não ter visto certos lugares ou tem pena dos lugares que não chegam a ser vistos por ele? Aqueles que mantêm na dispersão o foco da vocação romântica (Daniel Blaufuks é seguramente o antepenúltimo dos românticos, e só não digo o último porque ele foge deliberadamente dos extremos) percebem que a exigência radical da arte prefere a segunda hipótese: só sobrevivem os lugares que eu vi, só sobrevive o que eu fotografei. O romântico poderá definir-se nestes termos: solitário sobre a terra, resto atónito de um dilúvio, o artista sente-se no limite de um desgarramento do que apenas se salva pelo facto de se concentrar naquilo que vê e sente ao ver. Embora sabendo a lição última da morte: nascemos, vivemos, morremos (estou a citar Daniel Blaufuks) e, acrescentarei eu, tudo o que vimos, tudo o que corremos para ainda ver, foi visto, será visto, continuará pelos tempos fora a ser visto - para nada.

Neste país das águas, o trabalho da fotografia corresponde a um projecto de desassoreamento - remoção de lodos, detritos e limos, para tornar a terra habitável. Mas com duas linhas de vacilação. Uma delas é que a memória do país das águas não pode ser apagada: para alguns, é para esse país que toda a memória nos remete. Como escreve Graham Swift, "esqueçam as vossas revoluções, as vossas mudanças, as vossas grandes metamorfoses da história. É melhor considerar o lento processo árduo, o interminável processo ambíguo: o processo de formação do lodo humano - e da secagem do solo. Mas, primeiro que tudo, será que é desejável que o solo fique seco? Não para aqueles que vivem da água; nem para aqueles que não têm necessidade de uma terra firme sob os pés".

Em segundo lugar, a drenagem visual é uma história interminável. Daniel Blaufuks tentou tudo - incluindo o congelamento, que obviamente o fascina. Daniel Blaufuks sonha com uma máquina antitempo e pensa que um aparelho fotográfico se pode aproximar desse sonho. David contra Golias, Daniel contra o tempo. Um dia poderá fotografar o rosto soberano dos imperadores com o instrumento frágil de um polaroide. Mas cada fotografia que vem enxugar a terra é mais um detrito que sobre ela se acumula; cada imagem que procura fixar um rosto é mais uma fenda na matéria dos corpos. Daniel filma o descongelamento: o regresso à fragilidade do humano. E depois congela - gostaria de congelar o próprio filme. Para manter a vida recorre às armas da morte. Para com elas matar a própria morte. Como escreve Ruben A., numa frase que ele cita, "a morte estava intacta no fundo do mar". Mas, entre o gelo e o lodo, a vida continua, e todas as viagens não dizem mais do que isso.