Arquivos da interioridade

Todos os títulos de obras utilizados são a partir do livro de artista Blaufuks, publicado em Madrid em 2007. Algumas destas obras têm outros títulos originalmente.

    Um bilhete de cinema ou de comboio ficaram esquecidos no bolso de um casaco. Um envelope com um carimbo de correio vindo quem sabe se de Antuérpia ficou pousado sobre o tampo de uma mesa. Um álbum de fotografias, com parentes de quem já nem sabemos o nome, guarda-o a sapateira de um velho guarda-fatos. Coisas assim, presas a um real imediato e banal sempre povoaram a fotografia e a arte de Daniel Blaufuks. Mas sem deixarem de estar a par da seriedade que podemos encontrar na sua aproximação à antiguidade clássica (Nude Torso, 1996), à terribilidade do holocausto (Mein Kampf, 2003) ou do cristianismo (Cross, 2004 e Crucifixion, 2002-03) ou ainda ao complexo existir quotidiano (A Sense of Reality, 2003, Parade, 1999-2003, Man Is A Wolf To Man, 2003-06 ou Street of the Lonely, 2007).

    O singelo que representam aqueles objectos tanto quer dizer: eu sei que o mundo existe. Como afirmar a mais complexa encenação, luminosidade ou sofisticação de juízos que possamos encontrar na elaboração das imagens que citei. Quer ainda dizer mais. Sei que o mundo existe no que restou deste bilhete de cinema, que primeiro andou esquecido de mistura com o cotão do bolso do casaco e que depois acabei por guardar para lhe atribuir uma carga afectiva através de um reconstruir diarístico. Estou neste pedaço de papel que tem escrito os números de uma fila e de uma cadeira, a hora e a data de uma sessão de cinema, tal como estou na extensão do seu campo visual.

    Passar do juízo (a propósito do que restou de um bilhete de cinema ou de um selo de correio — Blaufuks padroniza a imagem de um selo russo, em Zeppelin, c.1998)  «sei que o mundo existe neste bilhete de cinema», ao juízo «e eu estou na extensão do seu campo visual», é passar do visível ao pensável. É partir para uma curva, que tem como ponto de partida a data do bilhete de cinema encontrado e posteriormente arquivado, e que é de tal modo inclusiva que ganha por limite remoto a cadeira de um cinema e a narrativa de um filme e por ilimite a experiência de factos que feriram o campo visual do fotógrafo e o acompanharam às afecções mais límpidas e também às mais obscuras da sua interioridade.

     Segundo Daniel Blaufuks, os trabalhos que são apresentados em Janeiro de 2008 referem o «diário escrupuloso» de «um senhor muito viajado que guardava todos os papéis», mas dele não ficou «nenhuma nota pessoal, nenhum registo dos seus pensamentos ou sentimentos». De facto, não. Dele, ficou um arquivo. Um fio condutor de uma imemória, um vazio de uma história. Uma acumulação a pedir que alguém lhe dê uma interpretação, que pegue nesses elementos aparentemente despojados de sentido, de razoabilidade, de amor ou de ódio e que os integre numa leitura, isto é, que saiba descer e subir na escala de valores que formaram o lugar da interioridade dessa agora já somente personagem. Papéis sem aparente significado, que não foram mais do que a cadeira em que numa noite distante esteve sentado a ver um filme ou aquela que ocupou num voo intercontinental ou ainda a factura do arranjo de um relógio são coisas que a um só tempo existem e não existem.

     Não existem enquanto material de valor, como um pedaço de cobre ou de ouro, são pois coisa que se pode deitar ao fogo ou fazer um bolinha e jogar fora entre o polegar e o indicador. Mas existem, e existem seriamente, enquanto elementos indispensáveis para um sujeito chegar a instantes remotos da sua interioridade. Como também existe para aquele que sobre o «senhor viajado» de que Daniel Blaufuks nos fala quiser saber e saber mais, através dos espaços vazios que vão entre as datações de um bilhete de cinema e uma conta de telefone. Trata-se, para aquele que arquiva, de uma maneira de colorir a sua própria interioridade. E para aquele que constrói ao redor de elementos perdidos de uma vida trata-se de edificar uma hipótese de realismo, isto é, de expressar um mundo que não viveu através de combinações de objectos, através de possibilidades. Mas para ambos tudo não passa de um descer e de um subir e de um percorrer a linha de um horizonte histórico vinculado ao tempo que já existiu e ao tempo que co-existe.   Temos presente uma espécie de unidade neutra que corre em paralelo à simultaneidade de um estado mental que exige a reconstituição de um estado de coisas físicas, através da análise de objectos quase cegos. Assim, um espião (Spy, 2003), num dia que considerou perfeito (A Perfect Day, c.2003), num velho subúrbio (The Old Suburb, 1999-2003) de Berlim (Berlin, 2003) encontrou à mesa do pequeno almoço (The Breakfast Table, c. 2006), na proximidade da sua própria natureza morta, um sentido de realidade, quando com uma lâmina cortou as veias dos seus pulsos (A Sense of Reality, 2003) e desse modo partiu para um fim perfeito (Endless End, c. 2004).

     Toda a experiência para esse «senhor muito viajado» se resumia à natureza exacta desses objectos. Entre eles funcionava (circulava) a sua interioridade. Por isso ele os arquivou, os sobrepôs um a um. Essa soma de elementos engendravam entre si combinações de que só ele teve a chave. Formaram um universo claro e legível no seu corpo, capaz de envolver múltiplas categorias de fenómenos, que a qualquer leitor exterior somente serão visualizadas como fragmentos. O seu proprietário — o arquivista — movia-se no meio desses elementos recolhidos e, dentro e fora deles, na procura da evidência dos seus erros e também na asserção das suas relativas verdades; enquanto aquele que os encontre agora apenas lhe irá procurar atribuir a terapêutica de uma imagem, que é a do conseguimento da sua arte.

     Aquele que arquiva, que organiza e estabelece a via do seu arquivo trabalha apenas para si o mundo da sua própria representação. Ergue ante os seus próprios olhos a sua representação. Dá-se a ver sem ver a si mesmo. É uma espécie de individuação sem conteúdo visível. O arquivo vive a sombra de uma hipotética interioridade sua. Enquanto aquele que argumenta os objectos arquivados, que de todo não lhe pertenceram ou que somente por uma vizinhança de sentimento deles se aproxima para lhes dar um dizer, esse, o narrador, o que move as possibilidades processuais da arte, o que está a fazer não é exactamente o aproximar-se de uma representação (só possível ao «senhor muito viajado» que Daniel Blaufuks conheceu «em tempos»), mas o inventar-lhe, o atribuir-lhe um sujeito.

     Às vezes aproximo-me de uma prática artística de um modo que pode parecer absurdo. Quando vejo os longos (porque de tempo de limites difusos) cadernos e livros de viagens e diários de Blaufuks ocorrem-me sempre dois termos de Espinosa: laetitia e beatitudo. Termos que, como alegria (mas uma alegria magoada) e como beatitude (com o exacto sentido de serenidade), podemos encontrar nos passos entrecortados por barras de luz e de sombra dos que caminham em Parade e que se vão difundir através da argumentação de uma forma de agir que encontra ecos, após correr o panejamento de Curtain (c.2006), quer no retrato de The Old King (1999-2003) quer na mão que se abre entre a projecção da sombra do corpo a que pertence e a superfície branca que a recebe (The Human Landscape, 2006).

     Ecos que guardam a ideia de uma alegria em crescendo (magoado) que não corresponde a uma imediata e comum experiência, pois esse pequeno bem-estar de felicidade é também coisa e sentimento (elementos dispostos a catalogação e arquivo), espécie de serenidade que demora e que tem consigo a qualidade de se manter nos seus limites. Ecos, pois, que podemos encontrar numa fotografia de 1986, da série Longe de Ti, no pedido para arrumarem o quarto pendurado na maçaneta de uma porta de hotel (The Motel Door, 2004-05) ou no deslizar de imagem que vai no acerto da página ímpar à página par do livro Blaufuks, quando nos oferece o diálogo da fotografia Autumn (2007) com o olhar do rosto da rapariga de The Lady With the Flowered Hat (c. 2003). Olhar e paisagem — como se esta fosse o que de facto está a ser visto —, estabelecem dentro do campo visual organizado pela presença das duas imagens um dilema.

     O arquivo vive de um desenvolvimento quase tão ingénuo como a relação serena (e todavia ferida até ao âmago) criada dentro do campo visual que vai até onde o  olhar de The Lady With the Flowered Hat pode alcançar. E o dilema resulta do desenvolvimento paisagístico (no seio de uma interioridade) que é, a um só tempo, um ver angélico e um querer ver egocêntico. O arquivo a que uma personagem como a de Street of the Lonely nos conduz, que chega até nós carregada de objectiva subjectividade, coloca-nos de um modo frontal um plasmar solipsista, introdutor de uma imagem primeira tomada como que em desvio wittgensteiniano: «os limites da minha visão significam os limites do meu mundo».

     O arquivo surge como a acumulação de dados que para «um senhor muito viajado» trazem consigo (e com testemunho de si para si mesmo) um sentido de estima e de verdade. Estima e verdade circunscritas a uma datação. Mas que são sinal de que a felicidade verdadeira (estado de plenitude) e verdadeira beatitude (gravidade), tal como propõe Espinosa, consiste na sabedoria e no conhecimento do verdadeiro ( que em si mesmo reside) e não numa tentativa imediata de ser mais sábio do que os outros. Os arquivos não servem de medida comparativa, vivem e perduram na individuação de um privado absoluto. Dentro de si se estabelecem as hierarquias e a partir da sua história comparável e incomparável se organiza a liberdade humana, a realização «em acto» da imagem vídeo Teach Me Tiger (c. 2000).              

     As imagens contidas num arquivo levam a uma análise da memória. Levam a um perseguir do mundo complexo de um eu. Trazem a uma actualidade (a daquele que observa e interpreta) configurações gráficas, realidades arquetípicas perdidas que voltam a ser apresentadas e que, em função desse seu novo apresentar, repõem — re-(a)presentam — comportamentos, fantasias, desejos, intenções. Os objectos de um arquivo (privado ou público, individual ou colectivo) arrastam consigo uma experiência de um reino povoado de imagens que o tempo e a arte da memória converteu em coisas despojadas da razão e da vontade. Todavia, o tempo que lhes é futuro, usando de uma imaginação activa, tal como procede Daniel Blaufuks, reordena esse Thesaurus Inscrutabilis que, ao longo do seu trabalho, múltiplas figuras de arquivos têm sido: e dá-lhes notícia, vontade e amor.