Devir passado e devir futuro

Não acredito em acaso, mas em sincronia. Enrica Bernardelli e Daniel Blaufuks participariam, inicialmente, em diferentes momentos do Projeto Respiração, mas decidi juntá-los em uma mesma edição. A razão imediata foi que achei que como abriríamos na semana da ArtRio (primeira feira internacional de arte do Rio de Janeiro) justificaria termos uma artista brasileira e um estrangeiro. A princípio, seus trabalhos não parecem ter nenhuma proximidade. Mas, à medida que foram falando sobre suas ideias – fazer um filme a partir dos olhos das pinturas da coleção (Blaufuks) e uma obra chamada Concerto de pálpebras (Bernardelli), observei que havia uma sintaxe visual que os unia: o olhar como ponto de partida. Mas isso ainda diz pouco. Meu olhar mental começou a abrir-se, minha percepção a querer que a inteligência penetrasse nessas singularidades tão ricas e afinadas com suas sensibilidades para inferir sentido de proximidade maior entre suas obras, que intuía existir. 

Entre as águas revoltas de Enrica e as águas calmas de Daniel, percebi pulsões que vinham do tempo. O que em Enrica era revolto e em Daniel, calmo era a forma de lidar com o tempo da memória que nos atravessa a todos. Ambos tratam da memória e desejam que ela pulse no presente imediato; no instante. Blaufuks quer aquilo que no instante se torna imediatamente camada de passado e Bernardelli, o que no instante, ao se lançar no passado, imediatamente se abre para o momento seguinte: o futuro.  O primeiro é devir passado, a segunda é devir futuro, mas ambos são instante presente.

A intervenção Três quartos de memória, de Daniel Blaufuks, vem da consciência de uma impossibilidade totalizante da memória. A memória do passado é necessariamente lacunar; cheia de falhas, buracos, alternâncias entre ausências e presenças. Dei-me conta desse aspecto quando ele comentou que gostaria de inserir na sua intervenção uma obra chamada Memory landscape (Shoa), que é uma caixa de luz com 30 slides de paisagem retirados de fotogramas do filme Shoa de Claude Lanzmann. O curioso (para minha surpresa) é que as imagens não tinham a presença de pessoas, num episódio da história que é marcado pela destruição brutal dos corpos. Ao contrário, paisagens tranquilas de florestas de pinheiros, que um dos entrevistados do filme diz que foram plantadas para esconder os segredos dos campos de extermínio. A encobrir a dor, a placidez da natureza na sua grandeza inerente. Longe do artista ter tido a intenção de esquecer dessa maneira o ocorrido, ao contrário, essa obra ali está para lembrar o terror nazista que praticamente exterminou toda a população judaica de Vilna, de onde a família Klabin é originária. Mas temos de descobrir por detrás da paisagem a dor escondida. O que desejo fazer ver é que lidar com a memória do passado dessa maneira é perceber a grandeza do imponderável, daquilo que inevitavelmente sobra e do qual nunca daremos conta por completo. É perceber, no abismo do passado, o limite do vazio, cujos contornos nos escapam, e aceitá-lo. O que o artista nos propõe é preencher essa forma sem forma, que é o passado, para que essa ação nos dê o contorno de nossa memória; de nosso presente.

A Fundação Eva Klabin, por ser uma casa e museu, é a materialização da ideia de um passado que se torna presente no futuro. Em outras palavras, como a arte resiste ao tempo ao se fazer presente no tempo. É uma memória, cujos contornos foram estabelecidos por Eva Klabin, como nos indica Blaufuks, na obra Três quartos de memória, a peça-chave da intervenção, que é um filme em vídeo e película super-8, em que os olhos das pinturas da coleção nos remetem a lembranças às quais não temos acesso e que pertencem a um universo cúmplice estabelecido entre a colecionadora e sua coleção. Os olhos das pinturas de Tintoreto, Pietro Roi, Reynolds, Lawrence, Gainsborough nos espreitam do fundo de seus tempos e criam uma atmosfera suspensa que nos aprisiona em uma experiência atemporal, que é a própria duração. Três quartos de memória tem a qualidade, através da maestria com que Blaufuks domina os mecanismos da imagem no cinema, de criar uma atmosfera que nos captura num círculo do tempo do qual não queremos sair e que poderia ser sem fim.

A sensação desencadeada pelo filme cria correspondência com outra obra: Déjà vue, que é uma projeção de slides de duas mulheres de costas, com um clima anos 50, olhando uma paisagem, que alude às duas irmãs, Eva e Ema, como se estivessem diante do futuro, sonhando com suas fundações. Mas o que nos prende a esta imagem é a sensação ambígua de surpreendermos em algo nunca antes visto, a sensação do já visto. Quando nos damos conta, então, de que estamos diante de uma mesma imagem que muda, mas que é sempre a mesma. Há na persistência da imagem memória dessa projeção que se repete – que, ao cair no passado, imediatamente volta para o presente -, uma forma de captura no círculo mágico do tempo de Blaufuks, que é a marca de sua obra. Finalizando, um auto-retrato do artista, que nos espreita do fundo do seu olhar, como se nos quisesse dizer: somos memória ao sermos tempo; somos devir passado

A intervenção Concerto de pálpebras, de Enrica Bernardelli, é um convite para atravessarmos o dia sem excluir a arte de nosso cotidiano. Como propõe Tarkovsky, construir esculturas com o tempo. A artista criou dentro da Sala Renascença da Fundação Eva Klabin outra sala de 9 x 4m com cortinas de filó de quatro metros de altura, que isolam no museu aquilo que nele já é isolado do mundo, convidando o olhar singular de cada um a atravessar esse espaço duplamente segregado, instaurando, dessa maneira, um novo território impregnado pela potência da arte – mas de uma arte que se debruça sobre o mistério e sobre o desconhecido e nos aproxima de nós mesmos, lubrificando nosso olhar. Ela nos presenteia com um campo de intensidades que nos coloca frente a frente com o imaginário, com o inconsciente e com as pulsões que nos move.

Para Enrica Bernardelli “os elementos mais importantes desse trabalho são as cortinas e as pálpebras, porque elas velam e revelam e nos permitem entender que a verdadeira dimensão é quando a arte é percebida na existência, sem necessidade de interagir com a obra. A arte não precisa estar nos museus, mas permear nosso cotidiano.” O que propõe com esta intervenção é fazer um cinema sem filme, fazendo cinema da percepção da realidade mesma. A Sala Renascença é transformada em fragmento do Filme U, uma obra da artista que vem se estendendo no tempo e que se materializa de diversas formas, dependendo do momento e do lugar em que é criada, mas que é basicamente movida pela ideia de transformar a vida em filme, reintroduzindo a arte no cotidiano.

A artista transforma a Sala Renascença em mais uma cena de seu cinema imaginário. Cria uma cena estática e silenciosa, em que corpos vivos estáticos com máscaras de animais, geométrica e de flores, ou simplesmente dormindo, desencadeiam uma realidade irreal em suspensão, de um mundo em metamorfose, como se fosse uma memória do futuro num ambiente que guarda a memória do passado. Sugere através de sua intervenção que nossa imaginação dê continuidade a essa “narrativa” visual que impregna nossas sensações.

Concerto de pálpebras é uma cena muda envolta por sons de pássaros, cujo canto nos puxa de volta para a realidade imediata da vida, indicando-nos que dentro e fora não existe na arte. Por isso as tênues cortinas de filó, que separam o museu do próprio museu, assim como as pálpebras, cujo movimento nos leva para dentro e para fora de nós mesmos, nos lembram da delicada e sutil separação ente uma arte e uma vida pulsante e uma arte e uma vida adormecida no cotidiano.  A artista se debruça sobre o abismo do futuro, com a convicção do mistério e do desconhecido, indicando-nos um tempo que não se deixa pressionar pelo medo do imponderável, mas que o deseja como motor da forma em mutação; metamorfose do tempo das sensações: por isso devir futuro.

Daniel Blaufuks e Enrica Bernardelli não são prestidigitadores do tempo, que nos ilude com sua linearidade operacional. Ao contrário, oferecem-nos o instante como potência da vida e da arte, partindo cada um de um ponto da duração e lançando-nos numa espiral em que passado e futuro se encontram na ponta de um cone instante que se abre em duas direções do abismo: devir passado e devir futuro, que são atravessados por sons da natureza, como o rumor do universo, que nos dá a dimensão de nossa realidade física e imanente. EmBlaufuks o barulho do mar, em Bernardelli o som dos pássaros.

Convido-os às suas próprias memórias e imaginações...

Marcio Doctors