Breve história de um contador de histórias

Começo a escrever quase sem pensar, com o brilho branco do ecrã do computador a piscar como um espaço mental sem feições, sem rasto de uma marca pessoal. Não me lembro da última vez que comecei um texto já sabendo o título, ou, que é a mesma coisa, estabelecendo um limite ou ponto de partida para a viagem. Então, com essa luz tão inquietante e plana como a das janelas dos prédios, que apenas permitem aceder ao interior com a nossa imaginação, começo a pensar a história de um contador de histórias que joga com uma ligeira vantagem: as suas histórias são formadas quando previamente soube “caçar borboletas” com os seus binóculos; ou seja, uma vez alcançado o objectivo voyeurístico que o converte em um desses escritores que simplesmente procuram e propõem algo para que o outro – o espectador/leitor – o encontre quase sem querer.

Penso e falo de Daniel Blaufuks, e ao mesmo tempo vem-me à cabeça uma frase: “Neste filme, todos os acontecimentos e pessoas são verdadeiros. Tudo que não seja verdadeiro é pura imaginação minha”. A frase pertence a Robert Frank e foi dita a propósito da sua primeira longa-metragem Me and My Brother, que mistura cenas de documentário com a mais pura ficção, alternando o preto e branco com a cor. Estas palavras sobrepõem-se a uma Bíblia no ecrã no início do filme. Assim pergunto-me se tudo isto não estará muito próximo das Collected Short Stories de Daniel Blaufuks, essa série de fotografias que obedecem a uma lógica desdobrada quando reunidas, à maneira de um díptico que amplifica ao mesmo tempo que redefine os seus sentidos individuais ou originais. Seria algo assim como no romance Rayuela de Cortázar, onde uma personagem caminha por Paris, e ao dobrar a esquina se encontra em Londres. No fundo, o que está a ser baralhado é uma nova narrativa que aparece por momentos ilógica devido aos saltos cronológicos e espaciais, produto dessa perspectiva múltipla. O leitor pode abordar o romance de maneiras diferentes porque este não impõe uma identidade; de certa forma estamos a falar de um romance interactivo que se baseia no conceito de leitura não linear e num tipo de leitor-explorador que se mergulha à procura de uma espécie de hiper-texto narrativo. E neste sentido podemos entender as fotografias da série Collected Short Stories – algumas tiradas em continentes diferentes que, no entanto, conseguem funcionar numa simbiose acertada – sempre narrativas, embora esta narrativa seja de aquelas que permanecem suspensas.

Talvez seja oportuno referir o teórico Michel Serres, para quem a história da ciência está submetida à turbulência, ou seja, está sujeita a ligações aleatórias de todo tipo entre diversas áreas. Serres assinala como a ciência avança a partir do imprevisível e o inesperado: “Tanto o mundo como os objectos, tanto os corpos como a minha própria alma estão, no momento do seu nascimento, à deriva. À deriva ao largo da descida pelo plano inclinado. E isto significa, como é habitual, que irreversivelmente são desfeitos e morrem (...) A deriva é o conjunto do tempo: aurora do aparecer, vida limitada pela finitude e desagregação, explosão aleatória das temporalidades múltiplas no espaço infinito” [1]. E, de facto, nas fotografias de Daniel Blaufuks encontramos subidas e descidas, momentos de maior intensidade e outros mais pausados, cores diferentes, sons diferentes; com efeito uma complicação de percepções que se assemelha ao vertiginoso ritmo de possibilidades que enfrentamos ao experimentar com o hiper-texto.

Algo semelhante parece ocorrer ao escritor Flannery, personagem do romance de Italo Calvino Se uma noite de Inverno um viajante: “Ocorreu-me a ideia de escrever um romance composto apenas por inícios de romance. O protagonista poderia ser um leitor que se vê continuamente interrompido” [2]. Esse estado sincopado da imagem que se produz se tomamos como referência o livro publicado a respeito da citada série de fotografias de Blaufuks para a sua exposição na Fundação Calouste Gulbenkian em 2003. Aqui o díptico, como também ocorre neste livro editado a propósito da sua exposição na galeria Carlos Carvalho, forma-se em dois páginas e um título. É, portanto, um argumento mínimo que representa uma narrativa global entrecortada, capaz de nos interromper continuamente. No livro, tudo é o produto de outro tempo, e a experiência torna-se íntima. Como em qualquer hiper-texto, o leitor tem perante os seus olhos um texto que, no fundo, se compõe exclusivamente de inícios alternativos de textos” [3]. De facto, tudo encaixa com aquilo que Roland Barthes definiu como ‘texto ideal’, pensando num texto entrelaçado que pudesse construir uma espécie de galáxia de significados, um texto reversível, como uma fita de Moebius. A obra de Blaufuks seria, portanto, um tipo de literatura expandida, capaz de ligar o verbal com o não verbal; um texto que é experiência e busca, onde o espectador/leitor define e decide o seu percurso de leitura, alterando o centro, a partida, a caminhar sem hierarquias. Tudo isto encaixaria com as palavras de Ana Ruivo no seu texto Para lá da linha do horizonte, onde recomenda começar pelo fim embora não tenha fim: “Mais do que uma homenagem ao cinema – um pouca à imagem da sequência de beijos censurados de Cinema Paradiso, de Giuseppe Tornatore – todos os ‘The End’, ‘Fim’, ou ‘Fine’ que surgem no ecrã remetem para a citação de Jorge Luis Borges, no Aleph, de um lugar que contem todas as imagens do mundo a partir de todos os pontos de vista, e por outro lado consubstanciam um discurso que, de forma coerente, o artista tem construído na manipulação e questionamento de conceitos como vida e morte, início e fim, memória e esquecimento, encontro e história, e horizonte e recomeço”.

Assim, é sem dúvida necessário entender a história dos seus diários. Etiópia, Iémen, Londres ou São Petersburgo. Se tomarmos este último como exemplo, editado para os Encontros de Fotografia de Coimbra em 1998, com o título de Uma viagem a São Petersburgo, reparamos como este diário de viagem manifesta o interesse de Blaufuks em fazer conviver a imagem e a palavra, sobretudo, a palavra escrita, a mão, inserida como a mais pura homenagem derridiana. “Chegámos pela tarde a São Petersburgo e tudo era como vem nos livros”, Blaufuks começa o seu relato. E assim começa uma história de recortes, recordações e polaroids capazes de exprimir a cor como se tudo fosse fruto de outro tempo.

Para Blaufuks, a viagem permite construir pequenos mundos à maneira de quebra-cabeças, cheios de mudanças de estilo, que acabam por formar a responsabilidade política de Daniel Blaufuks. É um zapping convertido em poesia visual, em memória de imagens e diálogos capazes de se sucederem de uma maneira vertiginosa. Afinal, Blaufuks traduz a imagem em movimento como um conjunto de fotografias de alta velocidade. Assim é no seu trabalho Life is not a picnic, mas também na sua série andorra, ou a significativa alternância intermitente de formatos em uma das suas últimas séries titulada Motel. Todas elas são tão diários como os seus diários, líricas metamorfoses que poderíamos intuir desde que nos anos noventa decidiu colocar um título com o nome de duas cores: A Terra é Azul como uma Laranja, toda uma declaração de intenções; por outras palavras: Listen to the pictures, como diz Robert Wilson.

As memórias individuais e colectivas revelam-se como uma colagem que mistura imagens de animação com imagens reais, com as roubadas de filmes, fotografias, músicas, sons e silêncios, porque para Blaufuks o silêncio é uma imagem; daí que em obras como Life is not a Picnic o ritmo seja paralisado e silenciado em alguns momentos de auto-retrato explícito protagonizado pelo próprio Blaufuks: “O descobrimento privado, o momento solitário possível na confusão citadina, a interiorização no exterior, a exclusão de ruído urbano a favor do silêncio que são as músicas e as palavras”. Tudo é uma questão de perspectiva, de alternância da ordem normal das coisas, de transtorno, algo tão visível no voyeurismo documental das suas Paisagens invertidas. Tudo em Blaufuks é um rico puzzle de fragmentos, de princípios e fins como os entrelaçados em Endless end, o melancólico tremer da imagem de Combo ou as coloridas paisagens de A Perfect day.

 Assim poderemos definir Daniel Blaufuks como um desses artistas capazes de contradizer o dirigido, esses que expandem e deformam a paisagem para permitir diferentes níveis de leitura que em muitos casos irão para além das usas intenções iniciais. De certa forma, quase todos os trabalhos de Daniel Blaufuks resumem-se ao estilo da experiência polifónica, de ideias combinadas; uma montagem de sequências ao estilo cinematográfico, independentemente do facto que em muitos casos não valorize uma linearidade narrativa e sim um jogo de linguagem à maneira de Wittgenstein. O mesmo Wittgenstein refere que após “várias tentativas erradas para aglutinar os meus resultados – ou pensamentos – num todo, reparei que nunca o conseguiria. Toda a minha capacidade de escritura não seria mais que comentários filosóficos e os meus pensamentos rapidamente se tornariam inúteis se tentasse obrigá-los a ir numa direcção única contra a sua inclinação natural. E isto estava, por isso, relacionado com a verdadeira natureza de investigação. Porque isto obrigava-nos a viajar por um amplo campo de pensamento que se entrecruzaria em todas as direcções” [4).

Nos trabalhos de Daniel Blaufuks, tudo tem a ver com uma evolução do processo de pensamento, como um rio capaz de ir formando o seu próprio curso que acaba por desembocar no seu lugar. Tudo é o produto de um acontecimento sobre o qual nada sabemos e no qual não importa quem sejam os seus protagonistas. Tudo é verdadeiro, e o que não é, como as sensações acima-citadas de Robert Frank, são pura imaginação de Blaufuks. Ou, em todo caso, uma série de apontamentos que lhe servirão para outra história em imagens, aquelas capazes de se auto-construir.

Blaufuks interessa-se por aquele momento suspenso, esse é o seu momento decisivo, precisamente a não-decisão, o acontecimento resultante do espaço entre dois acontecimentos virtuais, o momento de incomunicação neste universo de comunicação contínua, de saturação de instantes aparentemente decisivos que não lhe permitem encontrar sentido a cada segundo, com o simples gesto. Assim, cada fotografia assinala uma opção, uma escolha, uma frase, palavra ou história. Como assinalou recentemente o próprio Blaufuks: “São lugares e não-lugares que se fixam na nossa memória por razões que ultrapassam as linhas do mapa ou as do pensamento. Permanecemos num lugar devido a uma cara que vemos na rua, ou por causa do mau tempo, ou porque o carro avariou. Ou talvez apenas porque queremos acabar um livro que estamos a ler. De repente damos conta que estamos numa cama estranha, num quarto distante, a pensar no que veio antes e no que virá a seguir. Fixamos as paredes que nos rodeiam”.

Se Augusto Monterroso nos deixou o conto mais breve de todos os contos (‘Quando acordou o dinossauro ainda estava ali), Blaufuks faz a mesma coisa com fotografias que são roubadas em um segundo: jogadores de cartas, uma rapariga a tirar fotocópias... Qualquer gesto mínimo pode ser o motivo de uma história para Blaufuks, porque nesse esperar do espaço / tempo ‘entre as coisas’, descobrirá a fragilidade variável do mundo: “É aquele momento em que algo pode acontecer, e basta um segundo, que pode ser o próximo, para mudar tudo que existe”. Porque para Blaufuks qualquer imagem suscita um movimento invisível, um movimento que não chegamos a ver, um antes, mas sobretudo, um depois. Em muitas das suas obras estamos imersos num tempo não completo, e é com a nossa imaginação que fabricamos essa magia que concede vida à imagem. Porque Blaufuks valoriza a pausa, o momento da espera que é tão presente nas nossas vidas como inadvertido. Daí que muitas das suas personagens funcionem na mais absoluta solidão, uma marca indiscutível de uma era de comunicação via satélite e falta de comunicação pessoal. Blaufuks exemplifica tudo isto com imagens como os seus cezannianos jogadores de cartas que formalizam uma comunicação não comunicativa – o título é, neste sentido, de enorme causticidade: A Scientific and Literary Friendship. Mas pergunto-me o que se passaria se muitos das suas personagens descubrissem o truque em forma de fotografia de Blaufuks, se reparassem que foram caçados ou congelados por ele para uma sala de exposições. Provavelmente as perguntas já não fariam sentido, mas sim as respostas, e Blaufuks deixaria de se interessar por eles. Porque as personagens das suas fotografias parecem viver numa encruzilhada irresolúvel, nessa procura de respostas, na angústia da dúvida. Aqui não há teorias de jogos matemáticos, nem soluções lógicas.

John Berger assinala como “o primeiro acontecimento nos leva a observar outros que podem ser uma consequência do primeiro ou podem ser totalmente independentes (...) Muitas vezes o primeiro acontecimento, aquele que chama a nossa atenção, é mais óbvio que os que o seguem” [5]. Tudo consiste em submergir-se nessa experiência, num tempo narrativo capaz de valorizar essa expectação. E essa criação de um clima psicológico que é o produto de trabalhar os tempos mortos, um estado de equilíbrio instável, seria um aspecto chave na trajectória de um Daniel Blaufuks que procura sempre até conseguir uma boa imagem; ou seja, um universo que não implica uma perfeição fotográfica mas um sentido capaz de nos fazer pensar, ou melhor, parar o tempo por um momento; como uma palavra que implique mil imagens e o seu mais concorrido oposto.

Daniel Blaufuks refere que “actualmente, nas sociedades modernas, o acto de congelar é cada vez mais importante”. Daí que muitas mortes permaneçam intactas, como a controversa eterna juventude de Walt Disney; e daí também que Daniel Blaufuks trate de congelar o tempo para capturar a memória. Assim, as memórias congeladas que apresentava na galeria madrilena María Martín – hoje desaparecida – com o título Flowers for Walt and Other Stories. Porque Blaufuks congela como estado de homenagem, como recordação egoísta em forma de flor que não queremos que se murche, ou como aquelas esculturas mutiladas que embrulhamos e preparamos para uma vida que já não é sua, porque o tempo – iconoclasta espectador da história – já desgastou a sua parte. Blaufuks tira fotografias por tudo isto, mas também recorta, guarda e arquiva papéis no seu diário, como consciência do vivido e como exemplo de um existencialismo poético que envolve a sua sentida reflexão sobre o efémero e a condição temporal do humano.

Falamos de experiência e de tempo, de dilatações do visto, como uma amplificação da experiência, como engrandecimento do acontecimento. Tudo num mundo actual onde parece imprescindível recuperar a fé perdida na imagem. Como exemplo, poderíamos resgatar a estratégia de intensificação do real utilizada pelo artista Mark Boyle em Street (1964). Depois de improvisar um teatro, um grupo de pessoas foi colocado perante a cortina. Ao abrir-se a cortina, não aparecia nenhum objecto, nem um filme para ver, mas apenas uma montra de vidro que mostrava em tempo real o que se passava na rua, uma realidade espontânea capaz de fixar a nossa atenção naquilo que nunca fixaríamos de outra maneira. O idêntico pode ser diferente, e cada imagem, inclusive quando repetida, pode ser única (a experiência ‘Mozhukin’ de Kuleshov é particularmente paradigmática).

Daniel Blaufuks provoca uma espécie de ‘não tempo’ capaz de ser vivido se tratamos de construir outro olhar e experimentar outro tipo de percepção na qual não importa o lugar, o quê e o como, mas a atitude que gera a sua construção. Assim, interrogações e dúvidas deixam-nos num fundido a preto. Como aqueles ‘fins’ à maneira de horizontes que desenham uma ausência, sublinhando a importância do literário e cinematográfico no universo criativo de Blaufuks. A palavra como mil imagens possíveis, como princípio e fim irremediável de histórias incontáveis. Porque a linguagem entendida como experiência é capaz de transformar a passividade visual em gesto activo.

Blaufuks também homenageia a verdadeira experiência da leitura no sentido do prolongamento intencional que introduz o leitor numa espécie de tempo detido, de parêntese para a leitura intensa. É isso que Gary Hill descreve como tempo zero, “algo assim como um ponto fixo. No surf poderíamos descrevê-lo como o momento em que o surfista se situa na green room (o interior de uma onda). Essa linha de curva / ruptura o envolve de tal maneira que parece que o surfista não se mexe. Por isso, está numa posição perfeita, a ‘infinita. Quando participas num acto criativo, o que queres é encontrar e permanecer nessa espécie de ponto fixo o mais tempo possível. No entanto, são as rupturas inevitáveis do mesmo que permitem que o ponto fixo se revele fora de si mesmo. Paradoxalmente, necessita de algum tipo de interrupção para ser o que é: o diapasão consumado” [6]. Em Blaufuks a palavra complementa a imagem, e por momentos poderia até substitui-la como nessa ‘vida’ ou ‘horizonte’ que dominavam o seu projecto Sobre o infinito.

Tudo é o produto de uma intenção íntima, a da relação entre o espectador e a imagem. Mas também, insistimos, do tempo, dos seus prolongamentos, desacelerações e estratégias que unem as suas fotografias e as suas imagens em movimento, que como alguma vez descreveu o próprio Blaufuks, se podem apresentar como um conjunto de fotografias de alta velocidade. Essa intimidade em Daniel Blaufuks manifesta-se desde a solidão, algo que para ele descreve as nossas vidas. Daí que ‘um dia perfeito’ possa ser aquele onde o ruído urbano se apague a favor do silêncio, porque o silêncio é, sem dúvida, uma imagem para um Daniel Blaufuks que reclama o descobrimento privado, a clausura interior capaz de não sucumbir à agitação da multidão equivocadamente comunicada. “Quem tem por hábito ouvir sons de um walkman ou ler frases de um livro num espaço público, sabe do que se trata aqui”, escreveu. Assim, esse interiorizar do exteriorizado permitirá as nossas ficções, obter as nossas próprias perspectivas, cruzar o olhar.

Tudo isto tem muito a ver com essa característica ‘suspensão’ que predomina em quase todas as suas fotografias instantâneas. Blaufuks está interessado no momento depois do acontecimento, quando tudo ou nada pode acontecer. Essa suspensão traduz-se em espera, em apatia, em desassossego, em congelamento, em exílio, em antevisão, dias perfeitos ou fins sincopados que invadem paisagens como aquele cabide no Largo do Chiado. Tudo é produto de um instante não decisivo, de um breve tempo capaz de mudar tudo que existe. Daniel Blaufuks simplesmente faz de testemunha, tentando interferir o mínimo possível para guardar as suas ‘escolhas’ em caixas com a forma de molduras.

Tudo parte de um primeiro descobrimento, como o caso da protagonista de Black and White, que começa a ver a preto e branco e que é incapaz de ver a cores; por isso tem que imaginar essas imagens que no vê. Ou será que é ela própria que imagina que não vê? A nossa realidade é a cores, mas no entanto as imagens que vemos a preto e branco parecem ser mais reais devido ao seu carácter histórico, e Daniel Blaufuks joga com este absurdo paradoxo para evidenciar a aparente e duvidosa veracidade do documental.

No fundo, com tudo isto baralhamos a citada perda de confiança na imagem, num século que poderíamos caracterizar como o século no qual a imagem conseguiu desacreditar-se a si mesma. Hoje não é necessário encenar, porque tudo já está encenado. Pensemos na confiança cega na imagem que mostraram os primeiros espectadores de L’arrivée du train de Vicennes (1897) dos irmãos Lumière, que entraram em pânico ao pensar que o comboio ia passar por cima deles. A ausência de um hábito cinematográfico enchia a cena de realismo. Hoje, perante tanto excesso visual, precisamos do efeito contrário ou pelo menos de criar a nossa própria biblioteca ideológica, o nosso próprio arquivo desconstrutivo da realidade da imagem.

Daniel Blaufuks assume esta condição da história da imagem. Daí que, por vezes, ele trate de clarificar momentos escuros da história. Como exemplo, poderíamos destacar o seu filme documental Sob Céus Estranhos, que traça uma história sobre os judeus que passaram por Lisboa durante a guerra – alguns, como os próprios avós de Daniel Blaufuks, ficaram em Portugal. Neste filme Blaufuks trata de desmitificar a aparente hospitalidade de Portugal, que embora deixando-os entrar, concedeu autorização de residência a poucos, salvo alguns que, como os seus avós, tinham chegado previamente. Com imagens gravadas de um eléctrico no Rossio filmadas por Eugen Schuftan, que chegou a trabalhar com Fritz Lang em Metropolis, Blaufuks recorre a um texto seu que é interrompido por cartas do seu avô e textos de escritores que contam as suas primeiras impressões de Lisboa. É que Daniel Blaufuks bem sabe que olhar não é a mesma coisa que observar, nem um postal é igual a uma fotografia. Blaufuks, como Schuftan, é um explorador que pensa no próximo achado e não no último, que sabe que há turistas que são muito mais que isto.

Afinal, essa primeira impressão, essa experiência de viagem como descobrimento, está presente em todos os trabalhos de Daniel Blaufuks. Para ele, o percurso pode ser mais importante que o destino. O filósofo alemão Heidegger devia estar a pensar algo parecido quando referia que “no estar esperando, é importante o poder esperar o que queres sem esperá-lo”. A casualidade pode ser destilado em serendipidade e assim chegar a algo muito mais interessante do que aquilo que em princípio estaríamos conscientes de procurar. Porque Daniel Blaufuks é um contador de histórias capaz de congelar a sua própria história.


[1] Serres, M: El nacimiento de la física en el texto de Lucrecio, Pre-Textos, Valência, 1994

[2] Italo Calvino: Se uma noite de inverno um viajante, [Versão espanhola, Siruela, Madrid, 1993, p. 219]

[3] Wirth, U.: “Literatura en Internet. O: ¿A quién le importa quién lea?”, Ars Telemática, L’Angelot, Barcelona, 1998

[4] Wittgenstein, L.: Philosophical Investigations, The MacMillan Company, New York, 1953

[5] Berger, J.: Mirar, Editorial Gustavo Gili, Barcelona, 2001

[6] Quasha, G./ Stein, Ch.: “Performance liminar: conversación con Gary Hill”, Arte y parte nº41, 2002.