As Viagens de um Olhar

[Eduardo Brito]

 

 

 

É sempre um difícil exercício traduzir por palavras aquilo que se vê e sobretudo se sente quando se observam fotografias. A dificuldade aumenta quando, à subjectividade inerente a este tipo de análise, as imagens oferecem uma qualidade e uma força tão grandes que tendem a criar uma linguagem própria e coerente, um discurso simbólico que quase dispensa o vocabulário. Tal é, seguramente, o caso da obra de Daniel Blaufuks, nascido em 1963, considerado como um dos mais prestigiados "trabalhadores e criadores" da imagem no Portugal contemporâneo. Fotógrafo por formação, o seu trabalho foge, por algumas vezes, da sua matriz original. Contudo, independentemente dos meios de expressão da criação deste autor, o resultado acaba por afluir na força da imagem, regressando sempre ao desenho e à escrita da luz, seja esta gravada no instante decisivo, ou em movimento continuado.

 

Daniel Blaufuks mostra-se como um viajante. Terá na bagagem livros de Walt Whitman e de Pessoa, uma máquina fotográfica e um caderno, onde anota as suas ideias e cola as suas imagens. "Às vezes era necessário escrever porque tinha muitas fotografias e outras vezes tinha algo para dizer e precisava de fotografar para compor a página", diz-nos Blaufuks, a propósito dos seus diários de Londres (London Diaries, de 1994) e S. Petersburgo (Viagem a S. Petersburgo, de 1998), trabalhos que lhe conferiram, em definitivo, uma imagem marcada, uma identidade enquanto artista. Os diários de Blaufuks, enquanto exercícios da arte fotográfica (e, porque não, narrativa) existem em vários números, apesar de apenas os dois referidos se encontrarem publicados. São, nas palavras do autor, "uma mistura de realidades com poucas imaginações", que oferecem ao espectador uma certa vontade de entrar nos mundos que nos mostram, cumprindo, deste modo, um dos desígnios de Roland Barthes para a arte fotográfica: provocar no observador uma certa agitação interior (...) uma pressão do indizível que quer ser dito(1). Marcam um olhar próprio do lugar que visitam, recuperando a fórmula sempre eficaz do caderno de folhas grossas, onde se colam polaroids e, à volta das imagens se deposita um "sentimentário" do que se vai vendo e vivendo. Os London Diaries têm um registo mais intimista, ao passo que a Viagem a S. Petersburgo se centra numa revisitação à iconografia do universo soviético. Contudo, ambos passam, no entender do autor, por uma manifestação de "honestidade, que é rara na arte hoje em dia".

 

Mas nem só deste tipo de registos vive o já extenso trabalho daquele que se afigura como um dos mais conceituados fotógrafos portugueses nos espaços nacionais e, sobretudo, além fronteiras. As exposições e os livros sucedem-se, as viagens aumentam e, entre uma e outra paragem, Blaufuks tem tempo para dirigir a concepção fotográfica dos trabalhos musicais dos Madredeus, Mão Morta e Camané, entre muitas outras participações nas mais variadas áreas, onde os exemplos percorrem a decoração de interiores e o desenho de palco, passando por instalações e projecções de vídeo. Esta multiplicidade de formas e meios de expressão do olhar inquieto e irrequieto de Blaufuks encontra a sua justificação numa (também ela) visão de conjunto de uma determinada carreira: "um trabalho deve ser coerente, seja qual for o meio em que se desenvolve. São poucos os autores que possuem uma obra que se vai desenvolvendo ao longo dos anos, avançando, por vezes parando ou mesmo recuando, cometendo erros, mas em que se sente uma pesquisa através da experimentação dentro de um programa definido". E é nesta fase de pesquisa e experimentação que, no início de 2001, surge Black>White, curta metragem ficcional que transporta para a linguagem cinematográfica - para o vocabulário da fotografia em movimento - algumas das imagens de marca de Blaufuks: a cor forte, bem delimitada na sua dicotomia frio e quente, e alguns temas recorrentes do universo próprio de Blaufuks: os copos de vidro que distorcem horizontes, a água da chuva e flores. Ainda no campo do cinema, Blaufuks apresentou, há bem pouco tempo, mais uma continuidade no seu campo de operação. Sob Céus Estranhos é uma média metragem documental que nos conta a história dos refugiados judeus em Lisboa, durante a Segunda Guerra Mundial. Blaufuks, de ascendência judaica, fala de Sob Céus Estranhos como uma história que não se devia perder, uma metáfora da condição dos seus próprios Avós: "Não quis fazer um filme, quis contar uma história. Durante dois anos pesquisei em arquivos e acabei com material para vários filmes, mas a história era a mesma. Também não queria fazer um filme tradicional de entrevistas e música, não quis mostrar idosos a falarem de acontecimentos passados há cinquenta anos. Assim, o filme é um objecto pessoal que se encaixa perfeitamente no meu trabalho, uma memória de uma memória. Talvez um dia alguém conte esta história de uma forma mais objectiva, porque, na minha opinião, ela faz parte de mim. Daí a necessidade deste filme. Se eu não o fizesse, mais ninguém o faria". Nos trabalhos de pesquisa para Sob Céus Estranhos, Blaufuks encontrou material suficiente para criar Rejected, um conjunto de imagens sobre imagens, de fotografias de fotografias de judeus cujo visto de entrada em Portugal foi rejeitado, dando assim identidade e fisionomia individual a um conjunto de pessoas, que, provavelmente conheceram a morte em campos de concentração. Sobre Rejected, Blaufuks afirma que encontrou muitas fotografias nos arquivos destes rejeitados não se sentindo bem ao ter que "escolher quais os que fotografava e quais não, como se tivesse o poder de escolher entre os que teriam uma segunda vida ou os que ficariam esquecidos para todo o sempre. Porque ao mostrar estas imagens contribuo para a sua memória".

 

Daniel Blaufuks mostra-se como um viajante. Não é o convencional fotógrafo de viagens, mas as suas imagens vivem em vários lugares da "Terra Azul como uma Laranja", sejam eles em Tanger ou em Londres, em Madrid ou, mais recentemente, Nova Iorque, através de um conjunto de fotografias que mostram o dia a dia da Big Apple: da solidão dos tristes prédios grandes, à imagética americana, Blaufuks absorve com a crítica do olhar que sente o instante um universo próximo daquele que é observado por Jorge Colombo em Fullerton ou nos Dailies. E as viagens de Blaufuks não se dão só por entre aeroportos e auto-estradas. São sobretudo feitas num saudável saltitar de meios de expressão que a arte contemporânea oferece, convergindo num resultado que tem sempre por base a imagem, o vasto quadro por onde se sente o olhar, numa rara e qualitativa coerência estética, próxima da identidade da galeria dos brilhantes.

 

Qual Marat à espera do seu destino, Daniel Blaufuks fotografa-se numa banheira em S. Petersburgo. Por baixo do seu olhar melancolicamente colocado num qualquer vazio, podemos ler quando morrer vou ter pena de todos os sítios que não cheguei a ver. Talvez ver, neste caso, queira significar a actividade desenvolvida por Blaufuks desde 1988: fotografar, absorver o mundo e os seus detalhes, na micrologia do instante(2) que nos oferece a imagem fotográfica.

 

 

(1) BARTHES, Roland. A Câmara Clara, p. 36, Edições 70, Lisboa, 1980.

(2) Numa expressão de Bernardo Pinto de Almeida, em Imagem da Fotografia, p.20, Ed. Assírio & Alvim, Lisboa, 1995.

 

link:www.danielblaufuks.com